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Por Gustavo Corção publicado n’O Globo em 23 de março de 1972
AINDA a propósito do tabloide Domingo, que recentemente empreendeu a reprise de todas as mentiras com que o génio mau da revolução mundial quis se vingar do incompreensível heroísmo espanhol em 1936, vale a pena recordar. Vale sempre a pena recordar para não nos transviarmos demais nessa aventura que é a marcha da civilização.
QUANDO em 1940 a França caiu vencida, Maritain nos Estados Unidos escreveu para os franceses, de que se sentia tão cruelmente separado, páginas admiráveis que bem traduziam a dor imensa que passou pelo mundo como um vento de maus presságios: "É cruel demais ter de explicar ou de tentar explicar o desastre de seu próprio país. Na verdade, ainda não medimos bem a extensão de nossa desgraça. Mais do que nunca a França nos aparece como uma pessoa viva, preciosa em sua carne e em sua alma, preciosa para o mundo, carregada de promessas, de dons, de beleza e de doçura; e agora ferida, caída no chão e indizivelmente humilhada. (...) A impressão que todos nós aqui sentimos a de que a França foi traída por todos os lados, corresponde sem dúvida à realidade desde que se dê ao termo "traição" um sentido muito mais extenso, mais complexo e, ao mesmo tempo, muito mais doloroso e menos carregado de intenções criminosas do que se costuma dar."
ANTES disso, em 1939, a propósito do pacto germano-soviético, e independentemente das implicações superficiais e próximas que tal pacto trazia, um velho colaborador de Esprit, ao arrepio do anti-anti-comunismo de Mounier, já nos falava de uma traição imensa:
"CRENDO não fazer senão um pacto restrito, ... Hitler atrela à URSS, mais do que ao bolchevismo, e às incertezas de uma civilização asiática, o carro meio desmantelado dos destinos ocidentais.
[...] Hitler apunhalou seu cúmplice soviético, correu à BBC para fazer a mais precipitada, a mais estúpida declaração jamais feita por um Chefe de Estado. Em vez de contar até dez ou de dizer ao microfone da BBC que "o governo de Sua Majestade acompanhava com interesse o desenrolar dos acontecimentos no front oriental da Alemanha", Winston Churchill se precipita vorazmente sobre a "oportunidade", com a estúpida ideia de que não havia um minuto a perder, e depois de lembrar que sempre fora um tenaz adversário ao totalitarismo comunista diz-nos esta monstruosidade: "The past, with its crimes, its follies, and its tragedies fades away." Quando estava na hora de lembrar, no supremo instante em que a recordação ganha um fulgor de perenidade, Churchill acha que deve esquecer. E atira-se nos braços de Stalin que o deixa num gelado suspense sem resposta. Sim, Stalin deixa o impetuoso guerreiro britânico sem resposta de 22 de junho a 7 de julho. Churchill descobre que tem o dever de "quebrar o gelo" e repete a declaração de amor ao inimigo da semana atrasada que só se tornou não-inimigo pela vilania de seu cúmplice. Stalin se digna responder, e já é para reclamar a abertura da segunda frente...
CONSUMA-SE assim a segunda traição que logo é alegremente ratificada pelo 'Presidente Roosevelt. Mas a maior, a mais grave das traições contra a Civilização, contra o Cristianismo foi praticada pelos franceses da democracia-cristã ou da mais extremada esquerda que, na Resistance, formaram o primeiro grande foco de infiltração comunista nos meios católicos. O pacto Franco-Soviético, com seu enquadramento de novas circunstâncias, foi mais gravemente torpe do que o pacto germano-soviético que ainda poderia escusar-se em termos de imperativos estratégicos e de história superficial.
DEPOIS da Resistance, a obter de Franco uma passagem para suas tropas chegarem a Gibraltar. Todos hoje ainda lançam contra a Espanha martirizada de 1931 a 1936 a acusação de haver negociado com a Itália e a Alemanha nazista, num tempo em que todas as nações da Europa, em arranjos de n nações duas a duas, procuravam nervosamente acordos e alianças. Todos se lembram do bombardeio de Guernica mas esquecem a ajuda russa dada aos vermelhos que na Espanha incendiavam igrejas e conventos, matavam "curas" pelo simples e cristalino fato de serem "curas", e violavam freiras, pelo fato não menos adamantino de serem esposas de Cristo.
E ESQUECEM que, durante toda a Guerra, quando o fechamento do Mediterrâneo, com a conquista de Gibraltar, poderia decidir a vitória dos totalitários, na sua imperturbável coragem, o general Franco sempre disse "não" a todas as solicitações e ameaças nazistas. E os ingleses venceram a Guerra porque os espanhóis não traíram a civilização. E foi por isso, pelo insuportável espetáculo de sua grandeza, que a Espanha teve contra si todos os "vencedores" da Guerra. Com o primarismo filosófico que na época ditava normas ao ocidente, a ditadura espanhola parecia a única mancha do felizardo planeta azul. Todos queriam a cabeça de Franco; todos queriam ver a Espanha nivelada pelo pacto franco-soviético ou pela capitulação dos países de língua inglesa diante das nações cativas — a Polónia, a Estônia, a Lituânia, a Roménia etc. etc. agora tombadas, e "indizivelmente humilhadas" até hoje.
FOI WINSTON Churchill que teve a nobreza de defender a Espanha, e de apontar, no discurso que fez nos primeiros dias da vitória, a significação imensa da resistência espanhola.
[...]