Por Gustavo Corção,
publicado n’O Globo em 27 de abril de 1972
O ÚLTIMO número de REALIDADE vem demonstrar cabalmente, a quem ainda duvide, que existe no tão decantado mundo de hoje uma encarniçada, rebuscada e requintada flagelação de Jesus. Já não falo em desrespeito, em ultraje, em blasfêmia, porque todas essas categorias foram ultrapassadas, digo melhor, foram ultrapassadas e tornaram-se inacessíveis aos jocosos flageladores do século em que o homem vai à Lua mas não consegue alcançar seu próprio coração.
A NOVO approach inventado pelos rapazes da mais irreal Realidade começa pela cafajestagem numa página pesadamente intitulada JESUS NA D'ELE; progride no mais palmilhado lugar comum, na via asinorum que aponta o Salvador como UM REVOLUCIONÁRIO NA PALESTINA; galga o cume da atualidade e da moda na página SURGE UM HIPPIE NA GALILÉIA e finalmente atinge o fim obscuramente procurado na página O ANTI-PADRE EM NOME DO PAI (inspirada no título de um livro holandês). Culmina o approach de Realidade na página O HOMEM QUE É FILHO DE DEUS.
A PRIMEIRA abordagem parece que se passa em torno de uma peça de teatro de um jovem. Em certo ponto diz Carlos Eduardo: "Jesus nasceu em Jerusalém, ali por dezembro. Morreu no dia de finados na cruz, parece que de cãibra." O Baixim retruca: "Jesus é amor... e agora em sabor limão." E o redator: "E aí a questão: Jesus virou sabor limão para ser consumido mesmo fora das Igrejas...".
EIS amostras do tom. Esses rapazes um dia envelhecerão; não digo que crescerão ou aparecerão, digo que inevitavelmente envelhecerão e irresistivelmente morrerão. Terão tempo então de realizar alguma realidade que justifique e explique a fastidiosa vida que viveram quando tinham todos os dons físicos e fisiológicos para o exercício do respeito e da admiração pelas coisas respeitáveis e admiráveis, e pelas adoráveis. Mas pode acontecer que o trepidante e implacável Hoje, o monstrengo que adoram, não lhes permita essa oportunidade; podem amanhã ou depois ser apanhados numa esquina do mundo por uma das engrenagens do século, e só desejo que tenham alguns segundos de consciência para se arrependerem da molecagem que fizeram com o maravilhoso acervo de dons que receberam, e com os quais compuseram um strogonoff de molecagem à cores. É triste ser moço assim, moço com os milhões de anos que tem a humana estupidez que pretende responder a seu modo aos dons divinos. É triste, mas não é novo. Nem será a última vez, porque o mesmo Jesus, que hoje tantos perseguem, prometeu-nos, prometeu-lhes, estar conosco até o fim do mundo, para oferecer sua Santa Face aos que não tiveram a oportunidade histórica de cuspir e de esbofeteá-la nos dias de Sua carnal e cruenta Paixão. Como Ele mesmo disse a Saulo no caminho de Damasco — "Por que me persegues?" —, quando já era no seu Corpo Místico que se fazia a perseguição, diremos nós hoje que é em Sua Igreja que Jesus é escarnecido, é ultrajado —, e não faltarão maus levitas e legiões de mercenários e maus pastores para se alegrarem com esse "interesse" que os órgãos de comunicação e publicidade demonstram pela figura e pelo nome de Jesus. Não faltarão "espíritos largos" e filósofos otimistas para assinalar o lado positivo, os fragmentos de evangelho, os bens da Igreja neste bem planejado e já quase planetarizado ultraje ao Sangue que nos salvou.
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NA SEGUNDA parte da reportagem de Realidade, como já disse, estamos diante da pons asinorum, isto é, do cediço lugar-comum de Cristo "revolucionário". A ideia parece inteligente, mas é burríssima porque no sentido próprio e atualíssimo do termo não há nada mais absolutamente oposto ao mito da revolução política do que a pregação de Jesus. "Realidade" quer que Jesus tenha o olhar de um Fuhrer, a barba de um Guevara, e até a morte de nosso Tiradentes. Um contestador político. Ora, não há ninguém infinitamente distante do reformador social do que Jesus Cristo. E quando digo "reformador social" não me refiro aos militantes políticos que lutam ardorosamente pelo bem comum temporal, coisa que pode até constituir um dever; refiro-me especialmente àqueles que veem no correr da história um sentido polarizado por um paraíso secularizado. A maior veemência de Jesus, como é fácil provar, está sempre nas respostas que dá aos secularizantes da época, a começar pelos doze todas as vezes que escorregam nessa direção.
LEIAM o que ouviu o pobre Pedro, já eleito Papa pelo próprio Jesus, quando logo a seguir tem ideias que resolveriam o "affaire" que já se adensava em torno de Jesus e já anunciava uma tragédia misteriosa: a Paixão do próprio Filho de Deus. Leiam a passagem (Luc. XIII, 1) em que "enquanto Jesus pregava chegam alguns com a notícia da morte de vários galileus, cujo sangue Pilatos misturou com os sacrifícios". Imaginem a cena: galileus são massacrados dentro do templo pela polícia do representante de César. Que horror, e que tema para um revolucionário! Mas Jesus, como sempre que via puxarem para o chão a sua missão do céu, dá uma resposta desconcertante e aproveita o drama apenas para lembrar que estamos sempre em perigo de morrer e o que importa acima de tudo é fazer penitência para ter boa morte.
E ASSIM como não se vê um só gesto revolucionário provocado por quem o queira horizontalizar, agora, ao contrário, mostro um episódio que reduza pó a caricatura de Jesus revolucionário. Pergunto ao leitor alfabetizado: qual é o homem, a pessoa que Jesus declaradamente mais admirou diante dos doze? A resposta é fácil e está em Mateus, cap. VIII, 1, 11: a pessoa louvada é o centurião que lhe vem pedir a cura de seu servo e que, ouvindo Jesus dizer que lá iria e o curaria, respondeu com estas palavras maravilhosas, que durante vinte séculos todos os cristãos repetirão antes da Comunhão: "Senhor, eu não sou digno que entreis sob meu teto, dizei uma só palavra e meu servo será curado." E Jesus, ouvindo-o, maravilhou-se e disse aos que o seguiam: "Em verdade vos digo, que não vi ninguém em Israel com tamanha fé." Esse centurião era, nem mais nem menos, um odiosíssimo agente do Imperialismo Romano.
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E MAIS não digo sobre Realidade, mesmo porque o próprio Senhor Jesus em outra passagem, não menos veemente, nos aconselha a não "dar pérolas aos porcos".