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A fé vem antes da legalidade

Dom Tissier de Mallerais: “A fé vem antes da legalidade”

Rivarol – Dom Tissier de Mallerais – entrevista realizada por Jérôme Bourbon – publicada em de junho de 2012.

Há dez anos entrevistamos Dom Tissier de Mallerais por ocasião da publicação de sua volumosa biografia de Mons. Lefebvre, publicada pelas edições Clovis: Marcel Lefebvre. Une vie. O ex-arcebispo de Dakar concedeu uma longa entrevista a RIVAROL em 1968 que marcou data, dois anos antes de fundar a Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Por ocasião da reedição de sua obra L’étrange théologie de Benoît XVI, Herméneutique de continuité ou rupture, pelas edições du Sel, Convento de Haye aux Bonhommes, 49240 Avrillé (19 euros), novamente entrevistamos Dom Tissier num momento em que graves divisões surgem no seio da Fraternidade Sacerdotal São Pio X sobre a questão de um acordo com Bento XVI. Nesta entrevista realizada em 1o de junho pode-se ver que Dom Tissier, nascido em 1945 e que é um dos quatro bispos sagrados pelo prelado de Ecône em 30 de junho de 1988 – o único de nacionalidade francesa –, se opõe abertamente à estratégia de alinhamento com Bento XVI proposta por Dom Fellay.

RIVAROL : Fala-se muito sobre a “reintegração” iminente da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) na “Igreja Oficial”. O que significa isso exatamente?

Dom TISSIER de MALLERAIS: “Reintegração”: a palavra é falsa. A Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) jamais saiu da Igreja. Está no coração da Igreja. Onde há a pregação autêntica da fé, ali está a Igreja. Este projeto de “oficialização” da FSSPX me deixa indiferente. Nós não precisamos, nem a Igreja. Já estamos no topo, como um sinal de contradição que atrai as almas nobres, que atrai muitos jovens sacerdotes, apesar de nosso estatuto de párias. Querer-se-ia colocar nossa lâmpada sob o alqueire por nos integrar no orbe conciliar. Este estatuto proposto de prelazia pessoal, análogo ao do Opus Dei, é um estatuto para um estado de paz. Mas atualmente estamos em pé de guerra na Igreja. Seria uma contradição querer “regularizar a guerra”.

R. : Mas alguns na Fraternidade Sacerdotal São Pio X pensam que ainda seria um bom negócio. Mas V. Exa. Revma. não se sente incomodado por esta situação “irregular”?

Dom TISSIER : A irregularidade não é nossa. É de Roma. Uma Roma modernista. Uma Roma liberal que rejeitou o Cristo-Rei. Uma Roma condenada por todos os papas até as vésperas do concílio. Por outro lado, a experiência das sociedades sacerdotais que se alinharam com a Roma atual mostra que todas elas, uma após a outra, inclusive Campos e o Bom Pastor, foram obrigadas a aceitar o Concílio Vaticano II. Sabe-se o que aconteceu com Dom Rifan, de Campos, que agora não mais objeta a celebração da nova missa, e proibiu seus padres de criticar o Concílio!

R : O que V. Exa. Revma. responderia aos que creem que Roma mudou com Bento XVI?

Dom TISSIER : É verdade que Roma fez alguns gestos em favor da tradição. Principalmente ao declarar que a missa tradicional jamais foi suprimida e, secundariamente, ao suprimir em 2009 as chamadas excomunhões, declaradas contra nós quando fomos sagrados bispos por Dom Lefebvre. Estes dois gestos positivos geraram amargas queixas contra Bento XVI por parte do episcopado. Mas o papa Bento XVI, embora seja papa, continua modernista. Seu discurso programático de 22 de dezembro de 2005 é uma profissão da evolução das verdades de fé segundo as ideias dominantes de cada época. Apesar de seus gestos favoráveis, sua intenção ao nos integrar no orbe conciliar, não pode ser outra senão nos conduzir ao Vaticano II. Ele mesmo teria dito isto a Dom Fellay em outubro de 2005, e uma nota confidencial, publicada fraudulosamente, recentemente o confirmou.

R : Mas alguns acham que Bento XVI, vindo da Baviera católica e tendo – segundo eles – “desde sua juventude, uma profunda piedade”, inspira confiança. O que lhes responderia?

Dom TISSIER : É verdade que este papa é muito simpático. É um homem amável, polido, reflexivo, um homem discreto mas de uma autoridade natural, um homem de decisão que resolveu vários problemas na Igreja com sua energia pessoal. Por exemplo, problemas morais neste ou naquele instituto sacerdotal. Mas ele é imbuído do concílio. Quando diz que a solução do problema da FSSPX é um dos objetivos de seu pontificado, ele não percebe onde está o verdadeiro problema. Ele o situa mal. Ele o vê em nosso chamado “cisma”. Ora, o problema não é o da FSSPX, é o problema de Roma, da Roma neomodernista que não é mais a Roma eterna, que não é mais a mestra de sabedoria e de verdade, mas que se tornou fonte de erro depois do Concílio Vaticano II, e que assim continua até hoje. Portanto a solução da crise só poderá vir de Roma. Após Bento XVI.

R. : Como V. Exa. Revma. vê a solução deste desacordo da FSSPX com Bento XVI, visto por muitos como escandaloso?

Dom TISSIER : É verdade que a FSSPX é uma “pedra de escândalo” para os que resistem à verdade (cf 1 Pedro 2.8) e isto é um bem para a Igreja. Se formos “reintegrados”, cessaremos por este fato mesmo de ser um espinho cravado no dorso da igreja conciliar e cessaremos de ser a rejeição viva da perda da fé em Jesus Cristo, em sua divindade, em sua realeza.

R : Mas V. Exa. Revma. , junto com seus dois colegas, escreveram uma carta a S. Exa. Revma. Dom Fellay para recusar um acordo prático com Bento XVI. Quais são as razões desta recusa?

Dom TISSIER : A difusão da carta se deve a uma indiscrição de que não somos culpados. Recusamos um acordo puramente prático porque a questão doutrinal é primordial. A Fé vem antes da legalidade. Não podemos aceitar uma legalização sem que o problema da Fé seja resolvido. Submetermo-nos agora incondicionalmente a uma autoridade superior imbuída de modernismo, seria expor-nos ao dever de desobedecer. E para que? Dom Lefebvre dizia já em 1984: “ninguém se coloca sob uma autoridade, quando esta tem todos os poderes para nos destruir”. Creio que isso é sábio. Gostaria que produzíssemos um texto que, rejeitando as sutilezas diplomáticas, afirmasse nossa fé e por consequência nossa rejeição dos erros conciliares. Esta proclamação teria a vantagem de primeiramente dizer a verdade ao papa Bento XVI, que é o primeiro a ter o direito à verdade, e, em segundo lugar, restauraria a unidade dos católicos da tradição em torno de uma profissão de fé combativa e inequívoca.

R : Alguns creem que o proposto estatuto de prelazia pessoal vos protegeria suficientemente dos perigos de abandonar o combate da fé. O que V. Exa. Revma. responde?

Dom TISSIER : Isto é inexato. Segundo o projeto de prelazia, não estaremos livres para erguer novos priorados sem a permissão do bispo local e, além disso, nossas recentes fundações deverão ser confirmadas por estes mesmos bispos. Isso seria submeter-se inutilmente a um episcopado globalmente modernista.

R : Poderia V. Exa. Revma. precisar este problema da fé que V. Exa. Revma. deseja que seja resolvido em primeiro lugar?

Dom TISSIER : Com muito prazer. Trata-se, como dizia Dom Lefebvre, da tentativa do Concílio Vaticano II de reconciliar a Igreja com a revolução, de conciliar a doutrina da fé com os erros liberais. O próprio Bento XVI o afirmou em sua entrevista com Vitorio Messori em novembro de 1984 ao dizer: “o problema dos anos 1960 (portanto do concílio) era a aquisição dos valores mais maduros de dois séculos de cultura liberal. São valores que, apesar de nascidos fora da Igreja, poderiam encontrar seu lugar, uma vez purificados e corrigidos, na sua visão do mundo. E isso é o que se fez”. Eis a obra do concílio: uma conciliação impossível. “Que conciliação pode ter a luz com as trevas?”, diz o Apóstolo, “que acordo entre Cristo e Belial?” (2 Cor 6.15) A manifestação emblemática desta conciliação é a Declaração sobre a liberdade religiosa. Em lugar da verdade do Cristo e de seu reino social sobre as nações, o concílio coloca a pessoa humana, sua consciência e sua liberdade. É a famosa “mudança de paradigma” que confessou o cardeal Colombo nos anos 1980. O culto do homem que se faz Deus em lugar do Deus que se faz homem. (cf. discurso de Paulo VI no encerramento do concílio, em 7 de dezembro de 1965). Trata-se de uma nova religião que não é a religião católica. Com esta religião não queremos nenhum compromisso, nenhum risco de corrupção, nem mesmo uma aparência de conciliação. A chamada “reconciliação” daria justamente essa aparência. Que o Coração Imaculado de Maria, imaculado em sua fé, nos guarde na fé.

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