Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 21-07-1973
A RESPEITO da confusão trazida à Igreja pela "hierarquia paralela", eu diria também parasitária, produzida pelas exorbitâncias das conferências episcopais, ofereço ao leitor de hoje, em homenagem ao Alfredo Lage, uma transcrição parcial de seu artigo, publicado com o título de Viver sem ser amado, no número 14 de Hora Presente. Esse assunto merece ser abordado com perseverança, porque essa adulteração da hierarquia está no centro da tragédia de nosso tempo. Eis o texto de Alfredo Lage:
"NUM artigo aparecido em "Écrits de Paris" (março de 1971), alguém que se assina Civis Romanus resume do seguinte modo a atual situação da Igreja:
"DURANTE o último Concílio, houve na Igreja um acontecimento que, por analogia sem dúvida com certa revolução bem conhecida, o Pe. Congar denominou a Revolução de Outubro.
DE FATO, o nome é bem dado; pois, sob o ilusório pretexto de se atribuir aos bispos uma competência mundial, que partilhariam com o Papa, viu-se o episcopado sem tardança colocado sob a dependência de um número indeterminado de comitês, "conferências", secretariados, secretarias, conselhos etc., parentes bastante próximos dos Soviete e, como eles, ávidos dos poderes que a fraqueza de uns, a conivência de outros, iria atribuir-lhes ou permitir que abocanhassem.
EVIDENTEMENTE, essa pretensa "colegialidade" não pode apresentar-se como de instituição divina. Durante quase vinte séculos, ninguém, nem pastores, nem fiéis — nunca dela ouvira falar. É de criação recente; foi inventada pelos que, na sombra, meditavam impor à Igreja uma constituição muito diversa da que recebera do seu Fundador. Essa constituição é de origem revolucionária, na plena acepção do termo, e nesse ponto estamos de pleno acordo com o ilustre, dominicano acima nomeado."
O poder ideológico acima do poder dos bispos
Com efeito, substituir a autoridade dos bispos pelo poder ideológico que, através de grupúsculos motores, sociétés de pensée ou células dos Partidos revolucionários, dirige sub-repticiamente as massas e orienta a Opinião, foi — em intenção ao menos — o alcance inaudito dessa reforma. Através de Conselhos técnicos e de órgãos especializados, as "exigências' do mundo moderno" pesam sobre a Igreja e violentam a sua doutrina. E todos os dias, assistimos à introdução na Igreja de processos de liderança invisível — como sondagens, inquéritos, campanhas dirigidas etc. Tal é a estrutura do poder oculto. Até que — uma vez chegados ao poder — proclamem-se por decreto vanguarda da Humanidade, e oráculos infalíveis da Vontade Geral, os Partidos revolucionários nunca se apresentam abertamente como meros partidos ou facções. Dão-se como os únicos legítimos intérpretes dos anseios democráticos da Humanidade. E, através de técnicas precisas de manipulação do pensamento, "apresentam ao povo a decisão do próprio povo", como observou Augistin Cochin.
TRATA-SE — como bem viu Civis Romanus — de impor à Igreja uma constituição muito diversa daquela que recebera de seu Fundador. A tal ponto que, ainda recentemente, via-se o Papa obrigado a lembrar aos bispos que, por mandato divino, são eles os pastores de sua diocese. "Por necessária que seja a função dos teólogos, não foi aos sábios que Deus confiou a missão de interpretar autenticamente a fé, da Igreja; esta é sustentada pela vida de um povo de que os bispos são responsáveis diante de Deus" (Exortação Apostólica Quinque Jam anni, 8 dez. 1970). Como no seu último livro escreveu Maritain: "As comissões episcopais na melhor das hipóteses são puramente consultivas." "Se de algum modo, acrescenta Maritain, o bispo se tornasse, não digo de direito — está visto — mas de fato o agente executor de um comitê, ver-se-iam vulneradas sua missão mesma de sucessor dos apóstolos e a própria prescrição evangélica." (De l'Eglise du Christ, Desclée de Brouwer, Paris, 1970, p. 149).
Conferências episcopais: uma hierarquia paralela
FOI a partir do Concílio Vaticano II que se oficializou na Igreja esse sistema de comissões e sub-comissões. Remontemos às fontes: "Como as conferências episcopais — estabelecidas já em muitos países — deram magníficos frutos do mais fecundo apostolado, julga este santo Concílio muito conveniente que em todo o mundo os bispos da mesma nação ou região se reúnam em assembléia em datas prefixadas... a fim de que se constitua uma santa conspiração de forças para o bem comum das igrejas" (grifado por mim).
NASCIDAS da conivência de coordenar a ação pastoral dos bispos de um determinado país ou região, bem cedo deturpam-se as conferências na expressão institucional, administrativa, de uma espécie de "Concílio Nacional ou Regional permanente", órgão fantasma da Revolução de Outubro na Igreja. Seu primeiro efeito foi diluir o "poder ordinário próprio e imediato" dos bispos sobre a sua diocese.
PERCEBERAM imediatamente os partidários de uma "nova" Igreja a oportunidade de servir-se desses órgãos como instrumentos de uma hierarquia paralela. Com efeito, o mesmo "Decreto sobre o Ministério Pastoral dos Bispos" que dispôs sobre as conferências episcopais estabelecia, que o funcionamento intermitente das Conferências deveria ser suplementado por órgãos permanentes. Nos estatutos adotados pelas diversas conferências -- estipula o Decreto — "há de prover-se tudo o que possa favorecer a mais eficaz consecução de seu fim: por exemplo, um conselho permanente de bispos, comissões episcopais, um secretariado geral" (destaque meu).
SURGIU assim uma sorte de poder burocrático na Igreja.
DOIS fatores de ordem sociológica favoreceram essa formação: 1º) a tendência centralizadora que, por influência dos movimentos socialistas em todo o mundo, retira a faculdade de tomar decisões dos diversos níveis locais e particulares de organização para confiá-la a corpos de especialistas, situando o mais alto possível os centros de decisão: 2° o processo natural que propicia a concentração de poderes nas mãos dos que os exercem full time, fenômeno que na Rússia da Revolução, p. ex., assegurou a vitória do Stalinismo. "Em todos os escalões a autoridade e a influência passaram dos Congressos às conferências e aos comitês eleitos por eles, depois aos secretários desse comitês" (Roland Gaucher: 'Opposition en URSS, Albin Michel, 1967, p. 62).