Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo 7-2-76
RETOMAMOS HOJE a Explicação começada no artigo de 5ª feira passada, e retomamo-la no tópico da NOTA da Chancelaria da Cúria, por nós marcado (4) e que assim começa: “1°, há uma única Igreja fundada por Jesus Cristo;” Louvado seja Deus! Tenho Vontade de pular e cantar de alegria como os Reis Magos quando viram reaparecer a Estrela. ”Videntes autem stellam gavisi sunt gaudio magno valde.” (Mar. II, 12).
REPITO para sentir a doçura do refrão que, explícito ou implícito, está em todos os nossos artigos. Só há uma Igreja de Cristo! Credo in Unam Sanctam Catholicam et Apostolicam Ecclesiam! Mas o meu magno gáudio esfriou na continuação da leitura da NOTA: “2°, o critério de sua autenticidade é o respeito e a obediência ao sucessor de Pedro. Essa submissão distingue os católicos dos adeptos de outras Igrejas; 3º, rompem com a unidade os que introduzem abusos e também os que procuram reprimi-los subvertendo a doutrina e a disciplina.
E AQUI ESTÁ A RAZÃO de nossa melancolia. Depois de afirmar a existência de uma só Igreja fundada por Jesus Cristo, a Nota da Cúria nos dá um critério de sua autenticidade que é indubitavelmente necessário, mas está longe de ser suficiente, e nos diz que é essa submissão ao sucessor de Pedro que distingue os católicos dos adeptos de outras Igrejas. Este enunciado doutrinal feito num texto que identificou os pronunciamentos do Papa com as publicações do l’Osservatore Romano nos levaria a concluir que a pedra de toque do Catolicismo é a submissão a l’Osservatore Romano. Não temos a menor intenção de gracejar, mas não podemos disfarçar nossa intenção de reclamar melhor redação e mais cuidados à hierarquia de valores em matéria grave que envolve, para esquecê-lo ou subestimá-lo, o Sangue de nosso Salvador. A história registrou o caso de São Vicente Ferrer cuja insubmissão ao Papa legítimo, por erro de informação e de interpretação de notícias, não pôs óbice à sua ardente santificação e não impediu sua canonização. Ao contrário, o planisfério da calamitosa atualidade católica está cheio de cardeais e arcebispos que parecem submissos à Voz do Papa, ou insensíveis aos seus pronunciamentos, mas dão sinais de quererem ardentemente imitar Jesus crucificado. Não se pode evidentemente fazer em cinco linhas um resumo da doutrina católica, mas creio que seria possível lembrar a importância do papado numa redação que deixasse menos evidente a subversão da ordem dos valores.
OBSERVEMOS que a Nota usa esta expressão feliz: “que distingue os católicos dos adeptos de outras igrejas”, e aqui temos a feliz impressão de rever, através do céu nublado, a estrela que nos leva a Belém: existe então um critério, e vários sinais que permitem distinguir os católicos dos adeptos de outras igrejas. Louvado seja Deus! Nós ainda temos forma e definição. Mas a verdade nos obriga a dizer que o critério de autenticidade católica da NOTA não permite bem distinguir os católicos daqueles que dia a dia parecem empenhados em diminuir os sinais de respeito pelo S.S. Sacramento do altar e assim dia a dia levam os fiéis à perda dá Fé na presença real; também não deixa ver o abismo que os separa dos que riem ou sorriem da veneração dos santos e essencialmente dos que se afastam do Coração de Maria; também não nos ajuda a distinguir o catolicismo da religião crida e praticada pelos numerosíssimos adeptos de outras igrejas que decididamente se afastam da Cruz e do Sangue para pregar um humanismo ímpio e até para recomendar aliança com humanismos declaradamente ateus. (Será preciso repetir mais uma vez que todos os “humanismos” foram inventados para substituir ou para sustentar as ruínas de um cristianismo tido por impraticável nos tempos modernos?)
O CRITÉRIO DA NOTA, necessário mas não suficiente, e de prioridade discutível, também não nos permite distinguir um católico que tivesse a ardente santidade de um São Vicente Ferrer, de um “teólogo da libertação”, como o Sr. Leonardo Boff, que escreve as mais repulsivas fantasias contra a integridade da santa doutrina, mas tem o cuidado de não pisar os calos da hierarquia; também não se distinguirão dos católicos os que inventam pentecostalismos e os que celebram “missas” ecumênicas com praticantes de superstições que a Igreja sempre denunciou e repeliu: também não foi sequer posta em dúvida a pureza doutrinal do Arcebispo Primaz que teve a ousadia, ou o desembaraço de celebrar NO SANTO DIA DE NATAL uma “missa” (?) comemorativa do aniversário de uma loja maçônica. Tendo o título de Arcebispo Primaz, e Presidente não sei de quê, e nunca tendo tido o menor atrito com o Vaticano, D. Avelar Brandão pode fazer o que quiser com o Sangue de Cristo sem deixar de ser católico. Diante desse panorama que, se quisermos estender a fastidiosa enumeração, poderia encher todas as folhas do jornal, concluiríamos que nada é mais fácil do que ser católico — hoje, mas também seríamos obrigados a concluir, se não quisermos viver de mentira — vital, que há um medonho abismo entre essa planície de tolerâncias e a religião de um Deus Crucificado. Por isso nossa consciência católica reafirma que nós nos gloriamos na Cruz e nos inebriamos do Sangue, não podendo pois prometer sempre e em todas as circunstâncias a troca desses critérios pelo de uma submissão que facilmente se exerce pela omissão — se posso aproximar deste termo vazio aquele forte vocábulo — ou pela indiferença à matéria tratada, e tantas vezes maltratada, sobretudo quando essa matéria se prende ao temor de perder o agrado do Pai, e a doce companhia do peregrino de Emaús que prometeu estar conosco todos os dias, até o fim do mundo.
MAS POSSO E DEVO prometer procurar sempre o equilíbrio dos dois imperativos postos às vezes numa quase contradição. O leitor vê que não é fácil a tarefa que me foi imposta, enquanto Deus me quer neste mundo. Mas assim mesmo eu não a trocaria pelo facilitário que o progressismo nos oferece.