top of page

A pulverização da Igreja



Por Gustavo Corção,

publicado n’O Globo em 27-01-1973


QUASE poderíamos, a priori, descrever as fases progressivas do processo de demolição da Igreja empreendido pela Revolução Mundial. A Igreja distingue-se dos protestantismos por sua forma hierárquica, ou pela informe poeira dita ainda cristã deles. Para a Revolução é imprescindível o contínuo e progressivo ataque ao princípio de autoridade que dá forma às sociedades. Para chegar à desejada meta começou de longa data por difundir o termo comunidade que não implica ideia de forma, e por abolir o termo sociedade, quando se fala das estruturas eclesiais. A Igreja, no linguajar dos seus demolidores internos, apresentados nos jornais como teólogos, há muito tempo deixou de ser Sociedade. No seu livro de Le Paysan de Ia Garonne, Maritain frisou bem (p. 81) que a Igreja como sociedade será também uma "comunidade de pessoas humanas", com o primado da pessoa sobre a comunidade. Para a Revolução que se processa em tons diferentes nos dois hemisférios do mundo, é mister dissolver a pessoa dentro da comunidade e liquidificar a sociedade que, sem hierarquia, se desfaz em comunidade.


NA FASE seguinte do processo demolidor difundiu-se a ideia de que a Igreja é um povo à custa de uma equívoca interpretação do título do Cap. II da Lumen Gentium. Nesta etapa estão incluídas todas as tentativas de democratizarão da Igreja, desde a potencialização do termo Povo de Deus até à definição ou apresentação oficial da Santa Missa como assembleia dos fiéis, isto é, como estrutura de base. O termo base ressoa nas abóbadas de nosso século com várias conotações que convergem todas para o primado da causa material. Se conspiramos contra uma sociedade, isto é, contra uma forma, devemos, sempre que se apresentar ocasião, lançar no debate o termo base. Sem necessidade de grande argúcia dos demolidores, bastando para isto o descuido ou o sono dos pastores, hão de se encontrar os dois termos para designar a terceira etapa da obra que já agora se pode chamar pulverização da Igreja.


E ASSIM chegamos logicamente ao que já temos fisicamente espalhado no mundo católico: as comunidades de base que estão prontas para corroer, como térmitas, todos os grupos e sociedades do direito natural. A comunidade de base é a fórmula atômica da anarquia. A dinâmica de tais comunidades tem duas características principais: a primeira é a indefinida multiplicação de experiências e caprichos. Assim é que em muitas dessas comunidades espalhadas no mundo inteiro celebram-se missas particulares com liturgias que têm já a divertida improvisação dos happenings. O experimentalismo litúrgico lançado em Roma pelo Cardeal Lercaro e seus herdeiros encontra nas "comunidades de base" o seu campo próprio. Estamos em pleno movimento browniano da liturgia empírica, e de base. A segunda característica da dinâmica das comunidades de base está no afrontoso método de primeiro fazer e depois ver o que acontece. Dado que o mundo de hoje padece de uma diminuição planetária do caráter e da coragem, essa imposição da praxis revolucionária produz a figura do "fato consumado” diante da qual toda autoridade tíbia se inclina, ou até esboça uma genuflexão.


PARA ilustrar e documentar fartamente o que acima dissemos das "comunidades de base" recomendo vivamente a leitura da Hora Presente novembro/72, nº 13, que dedicou quase todo o número da revista ao exaustivo estudo de mais esta enfermidade que é uma espécie de cupim, ou de herpes que se espalhou na pele da Igreja produzindo em todo o seu corpo pruridos de novidades, pruridos de desobediência, pruridos pornográficos, pruridos litúrgicos, pruridos marxistas.


E NÃO se admire o leitor se, à frente de muitos desses movimentos que querem destruir a hierarquia, encontrarmos bispos e cardeais. Não há aí nenhuma contradição lógica, haverá sim a contradição psicológica que leva ao suicídio e que se alastra na Igreja como autodemolição. E a própria hierarquia que destila o veneno que se transforma, se multiplica e se volta contra ela. Todo o mundo hoje sabe que são os bispos, com algumas santas exceções, que estão comandando a destruição da autoridade, a democratização, a comunização, a pulverização da Igreja.


CORRENDO os olhos pelo imenso material coletado por Hora Presente, num trabalho de Hércules, nós vemos desfilar fastidiosamente os nomes de personagens conhecidos: Hans Kung, Ivan Illitch, Jean Cardonnel, Jean-Marie Do-menach Rahner, Congar, Suenens, Alfrink, Fesquet, Girardi etc. etc. etc.


SE quisermos aqui reproduzir as denominações dos grupos e movimentos que nascem e se multiplicam em sub-sub-legendas teríamos de ocupar todo o jornal. E nessa marcha, dentro de um ano precisaremos de um volume especial da Lista Telefônica para catalogar os pedaços a que se reduziu a Igreja Católica. Eles mesmos já traçaram o programa: A Igreja desierarquizada (seria melhor dizer anarquizada) e reduzida a milhões de pequenas igrejas carismáticas e proféticas.


NO mesmo número de Hora Presente é feito um judicioso paralelo entre as Comunidades de Base e os Cursilhos.


HÁ evidentemente em todos esses fenômenos uma interpenetração dos dramas da Igreja e das tragédias e comédias da Civilização. Esperamos que a Hierarquia descubra que deixou portas e janelas abertas demais em dias de tempestade e de revolução. Falaram no "ghetto", como os modernistas em "torres de marfim". Resta um dado perene do senso comum: a Igreja, para bem se governar, precisa Casa abrigada do vento e dos vagabundos. Precisa arrumação. Ordem.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

É proibida a reprodução total ou parcial de textos, fotos, ilustrações ou qualquer outro conteúdo deste site por qualquer meio sem a prévia autorização de seu autor/criador ou do administrador, conforme LEI Nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

bottom of page