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A subida deste Carmelo


Por Gustavo Corção,

publicado n’O Globo em 26 de fevereiro de 1972


PERMITA-ME o leitor, mais uma vez nesta coluna, que tantas vezes foi liça ou campo de batalha, meditarmos serenamente como se estivéssemos no fundo de um claustro, sem o menor compromisso com a ciumenta e devorante atualidade. Esqueçamos a viagem de Nixon à China, que certamente não nos parece um negócio da China, e ocupemo-nos das coisas sem data. Conversemos das coisas do Reino de Deus. Da Santa Missa, por exemplo, que perpetua o mesmo e único Sacrifício de onde nos vêm, por invisíveis fios, todas as energias espirituais de nossa Salvação, de nossa Ressurreição e de nossa transfiguração.


O MEU leitor habitual sabe que não sou entusiasta das mil e uma reformas litúrgicas que não foram determinadas pelo Concílio mas de certo modo foram produzidas nas brechas deixadas pelo Concílio. O Concílio apenas permitiu a dilatação da língua vulgar (costumam dizer pomposamente vernáculo) em algumas partes da Missa; os atualizadores e novidadeiros se precipitaram sobre a brecha e em poucos meses atiraram pelas janelas a língua própria da Igreja, o Latim, até na intimidade do Opus Dei monástico. Não vou hoje me alongar nas recriminações e nas queixas. Ao contrário, vou confessar a primeira e única coisa que até agora me pareceu vantajosa, e receio que muitos liturgistas se espantarão com o pormenor a que hoje já me afeiçoei. Por incrível que pareça, este detalhe é a carreira de fiéis em forma processional na hora da comunhão.


ANTIGAMENTE (há dez anos atrás ), na hora da comunhão os fiéis ajoelhados, como se estivessem à mesa, na Ceia do Senhor, esperavam o Senhor Jesus, que então servia diligentemente à mesa e distribuía o pão. Hoje. quando a mania do comunitarismo e a ideia de assembleia dos fiéis chegou a prevalecer em documento oficial sobre a ideia de Sacrifício, temos esse resultado contraditório que só se explica pela febre de variedade: dispersa-se a mesa da Ceia, e volta-se à situação peregrina em que o Povo de Deus celebrava a Páscoa em pé, com os cintos apertados.


DESSA alteração e da meio desordenada procissão para a comunhão podemos ao menos tirar um pensamento consolador. Estamos ali na fila como estamos na vida. Em passos miúdos mas irreversíveis caminhamos, avançamos em direção de nosso Fim. Em vez de nos reunirmos como se estivéssemos no cotidiano repasto que nos dá forças espirituais para aguentar o dia, estamos em marcha em fila, como se aquela comunhão fosse o nosso viático, e como se o Cristo sacramentado fosse ali adiante a ponte estendida entre este mundo e a Pátria verdadeira. Estamos fugindo do Egito. Atravessamos o Mar Vermelho, avançamos em fila. As vezes morre o mais moço antes do velho trôpego. Mas o velho trôpego passo a passo se aproxima do sacramento dos sacramentos, que, se já não lembra o ameno ágape, "passion recollected in tranqullity", ao contrário se nos apresenta com profundidades de abismo.


CREIO que essa meditação é mais fácil para pessoas idosas. O fato é que agora, cada dia, eu vejo na fila da comunhão a própria figura de meu resto de vida; e alegro-me com a ideia amorosa de estar caminhando, de estar subindo a última ladeira, e a amorosíssima ideia de estar sendo esperado por um Deus de braços abertos. Haverá ideia ou sentimento mais apaixonado do que essa ou esse de estar sendo esperado? Talvez seja esta a mais pesada espécie de desespero: não apenas a falta do esperar, mas a falta infinita de não ser esperado.


A ESSE desesperado eu gostaria de dizer que se acercasse da igreja no fim da missa e contemplasse o singelo quadro da fila dos fiéis que vão comungar. Ali está resumida toda a humanidade, toda a história, e lá no fundo está o Deus apaixonado que não se cansa de esperar por nós. É só entrar na fila, se já passou pelo tribunal da penitência para receber a veste nupcial, e é só andar devagarinho, sem olhar para trás. Em cada passo morremos para o mundo e nos aproximamos daquele que no Cântico dos Cânticos diz audaciosamente à sua amada: "Quero o beijo de tua boca."

* * *


RECEANDO que o leitor, nesta altura, conclua que, então, se o que prevalece no ato religioso é a disposição interior, tanto faz esta ou aquela rubrica, este ou aquele detalhe da liturgia.


LONGE de mim tal ideia. É verdade que em todos os passos da vida espiritual prevalece a vida interior, a resposta que a alma dá aos gemidos do Espírito; mas se é também verdade que podemos nos acomodar até alterações menos felizes que um dia a Igreja corrigirá, não é menos verdadeiro o perigo que constitui para as almas a subversão que torna a Liturgia dificilmente propícia à vida interior e à verdadeira oração sem a qual a Liturgia será apenas uma gesticulação mais ou menos pomposa. A atoarda de certas missas dominicais, a vulgaridade produzida pelo afã de agradar aos jovens, o abuso, a desordem, o mau gosto perverso — tudo isto mais afasta do que atrai. E esta será uma das razões pelas quais aumenta dia a dia neste século o número dos desesperados que não só deixaram de esperar como também já não sabem que são apaixonadamente esperados.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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