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Por Gustavo Corção publicado n’O Globo em 17 de março de 1972
COM profundo alivio que marco no meu sucinto diário este dia em que terminam as férias, os meses de dispersão, de programas ferozes, de protelações e desapropriações misteriosas; sim, os meses em que sempre ocorre uma catástrofe de dimensões nunca vistas produzidas pela rebelião dos elementos. Anos atrás foi o elemento água que se esqueceu do doce nome de irmã-água e se tornou uma fúria devastadora; neste ano foi o fogo que escolheu São Paulo para marcar sua cólera, quase diria sua impaciência de corrigir ou castigar os desvarios humanos. Além disso, há sempre, nesses três meses de distensão frenética a que dão o nome de férias, mortes jovens nas estradas de Petrópolis e Teresópolis.
ESCREVI há muitos anos, quando ainda tinha em Petrópolis uma casa de verão, um artigo onde provava cabalmente que era preciso ter saúde de ferro para resistir a esse peculiar tipo de descanso. Hoje, que já não posso gabar-me de nenhuma espécie metálica de saúde, resolvo o problema de minhas férias pessoais de modo mais simples: trabalhando como relógio velho. O perigo é parar, é interromper o ritmo da série de coincidências maravilhosas e milagrosas que mantém vivo um corpo qualquer, e por mais forte razão um pobre corpo menos do que qualquer. Por isso não paro; e por isso me alegro quando retomo o contato com todos os outros ritmos.
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A BOLA do mundo também não tem férias marcadas nas constelações zodiacais. Seu destino é girar monotonamente, como mulher, diante do mestre Sol, que de doze em doze horas fecunda um e outro hemisfério com seu olho de fogo vivo.
MAS A humanidade que nasceu, quase seria melhor dizer que deu, nesse mundo, como espécie de mofo inquieto, não tem a mesma monotonia dos corpos celestes. Ao contrário, e nesses dias mais do que nunca, o dito mofo agitou-se e produziu, também mais do que nunca, uma abundante secreção de tolerâncias e molezas.
A VISITA do Presidente Nixon à China não traz nenhuma vantagem econômica ou espiritual para o Ocidente, nem para o Oriente; mas traz ao planeta um indiscutível acréscimo de amolecimento geral. O grande mandamento que paira no firmamento desta quadra do século é indubitavelmente este: "Amolecei-vos!" Essa é a bandeira; seu cumprimento será a virtude máxima: o mundo tende a transformar-se numa geleia. Por isso, e para mostrar ao mundo e aos seus compatriotas que ele é um homem de seu tempo, e que ninguém poderá gabar-se de ser mais gelatinoso, mais up to date, o Presidente Nixon, depois do carnaval da recepção na ONU dos sequestradores da China, atende ao mundo que tinha ânsias eróticas de mais essa abertura do Ocidente. Há homens especialmente dotados que têm o instinto profundo das verdadeiras ânsias do mundo dos homens, que raramente coincidem com o que eles mesmos dizem em seus alaridos. É preciso possuir o ouvido fino dos auscultadores da História para adivinhar o que quer o mundo através da contraditória algazarra do que diz querer. Em outras palavras, há homens especialmente dotados para sentir aquilo que certa época paradoxalmente precisa: são raros; muito mais abundantes são os dotados de um mimetismo que os leva a trazer ao mundo a pior contribuição. Receio muito que o Presidente Nixon e que a quase totalidade dos dirigentes do mundo atual pertençam a esta segunda espécie, a dos que puxam para baixo. Na continuação desse rebaixamento progressivo nossos bisnetos andarão alegremente de quatro. E não haverá mais bem e mal: tudo será neutro e vagamente azul.
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A VIDA continua. E é por isso que ontem estivemos a dar uma arrumação na sede da Permanência, que já pelo seu nome é uma bandeira de continuação. E também continua o curso que venho oferecendo há mais de vinte anos a um grupo de fiéis que agora trazem os filhos que nesse meio tempo nasceram, cresceram e querem continuar a mesma misteriosa e vertiginosa course aux flambeaux.
EM palavras menos enevoadas: segunda-feira, 13, às 18 horas, na Rua das Laranjeiras, 540, começaremos as palestras deste ano. A entrada é franca, e o leitor está convidado. Falaremos das coisas do Reino de Deus e tenho a intenção de passar a metade do ano letivo na consideração do oitavo e do nono artigos do Símbolo dos Apóstolos. Começaremos, pois, segunda-feira, 13, pela solene profissão de Fé: "Creio no Espírito Santo." E desde já imploro ao mesmo Espírito que me diga o que devo dizer.
E APROVEITO para anunciar aos amigos de Permanência que neste fim de ano nos caíram do céu novos combatentes dispostos a permanecer, e que tencionamos dilatar o campo de nossas publicações graças a equipamentos recebidos de generosos doadores. Mas, para que esse programa de expansão seja bem sucedido, é preciso que os assinantes mantenham suas assinaturas e que os homens ricos que assistem com interesse e aprovação ao nosso combate nos tragam sinais concretos de sua generosa simpatia. Precisamos da ajuda e participação de muitos e até estranhamos que não sejam mais numerosos, não façam fila em nossa porta os que pressentem a verdade e a beleza da causa que defendemos.