Por Gustavo Corção.
VALE A PENA continuar a conversa de grande proveito para o conhecimento de nossa alma e certamente o desenlace de nossa sorte. E aqui me ocorre a idéia de desfazer um equívoco que perturba toda a atmosfera de nosso tempo: todos imaginam que o termo “amor-próprio” se tornou antiquado e que foi substituído pelo termo “egoísmo” que julgam conhecer. Já o psicólogo Erich Fromm, citado em outras linhas, tendo chegado à descoberta sensacional dos dois amores de si mesmo, o bom que nos leva a Deus e o perverso que d’Ele nos afasta, infelizmente escolheu dois termos que desviam a atenção devida à antiga sabedoria : self love e selfishness, que se traduz por amor de si mesmo e egoísmo. Ora, a idéia que o termo amor-próprio nos incute é distinta da idéia significada pelo termo egoísmo. Este último está horizontalizado no plano da justiça e das relações humanas sem nenhuma referência a Deus. Ao contrário, o termo amor-próprio e a idéia que ele nos incute é totalmente diversa do egoísmo. A noção de amor-próprio é impossível sem referência à relação homem-Deus, e até pode ser definida como uma inclinação má, deixada nas almas pelo pecado original, que nos afasta de Deus e nos leva a um desregrado amor de si mesmo e a um amor ainda mais desregrado das criaturas exteriores. Uma esquecida expressão escolástica define bem a principal função do amor-próprio: avertio a Deo et convertio ad creaturam. Depois do primeiro passo do amor-próprio, que é a aversão a Deus, ele se multiplica em falsos amores de que a alma decaída tem fome. Posso até, entre os subprodutos do amor-próprio, incluir o egoísmo e também o bastardo conceito de justiça social, nascido nas revoluções contra Deus, e agora saboreado pelos novos eclesiásticos.
A RIGOR pode-se dizer que toda a calamidade que hoje flagela a Igreja Católica é fruto espúrio de uma maratona de amor-próprio desencadeada, com forte apoio do Demônio, em todos os escalões da hierarquia. Todas as aberrações e perversões admitidas na nova Igreja, são invariavelmente, frutos da aversão a Deus, e do complementar amor do próprio umbigo. Sim, insisto e insistirei a tempo e contratempo que todas as aberrantes inovações nasceram da primeira de todas as impurezas: o amor-próprio. Convém voltarmos à consideração do egoísmo e da justiça, para que o leitor não imagine que menosprezei a virtude da Justiça reduzindo-a às deformações dos tempos modernos. Algum religioso, talvez até três religiosos, ainda se lembrarão de que a justiça, como a Igreja a vê e a estimula, tem sido perversamente rebatida sobre o plano dos negócios humanos. Guardo a esperança talvez ingénua de supor que os três religiosos, ou cinco, (mas não exageremos!) ainda sabem que a mais alta forma de justiça é aquela que nos leva a prestar a Deus o culto de adoração que lhe é devido. Este ponto alto da virtude da Justiça é também chamado virtude de religião. Contrariá- la ou desprezá-la é a mais clamorosa injustiça que pode o homem praticar: a recusa de prestar a Deus o culto de adoração que lhe é devido. Repeti em forma negativa o que disse acima em forma positiva com a intenção de conquistar mais um religioso e algum padre para esta conjuração com que nos atrevemos a lembrar a antiga e invariável sabedoria. Creio entretanto que 99% das pessoas que pronunciam o santo nome da Justiça estão longe de querer prestar o culto de adoração a Deus. Sinto-me até um pouco ridículo na exegese com que estou recordando a verdadeira noção de Justiça! O fato inegável é que toda uma corrente revolucionária foi motivada pelo ressentimento humano. Já há muitos anos ultrapassei a idade em que alguém ainda pode acreditar na generosidade dos socialistas. Mas ainda acredito no fato bruto que se impõe a qualquer observador: os movimentos revolucionários motivados pela mais-valia e pela “justiça social” estão aí reclamando dos imbecis um culto de admiração.
TODA A TRAMA dos problemas modernos na cidade e na Igreja resultam de uma subversão de todos os valores e todas as virtudes cristãs. Chesterton dizia que esse palavrório das modernas ideologias são apenas as antigas virtudes cristãs enlouquecidas. O firmamento das civilizações onde brilham as constelações de valores, critérios e idéias foi terrivelmente mudado depois da renascença e da Reforma. O que sobrou no mundo ocidental cada vez mais burro e menos cristão, foi a tarefa de aceitar, defender e cultivar os erros que visaram a morte de Deus e o enterro da Igreja.
ESSE MOVIMENTO de idéias, valores e critérios consistiu principalmente na subversão ditada pelo amor-próprio tornado a peste negra daquele e de nosso tempo. Digo mais claramente: o mundo moderno oficializou para as almas (as almas?) e para as instituições reviravoltadas, esta brutal inversão de valores e critérios. E hoje vemos cada dia que os mais ardentes seguidores de tais movimentos são o clero e a hierarquia eclesiástica, em todos os seus escalões. Até quando, meu Deus?
Publicado no jornal O Globo
Nota: Esse foi o último artigo de Gustavo de Corção antes de sua morte.