Contra-Reforma
- Mosteiro da Santa Cruz
- 27 de out. de 2022
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Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 28-07-1973
CONTINUANDO a conversa com o velho padre nordestino, contei-lhe, a propósito do Latim, uma pequena história que trago viva na memória. Passou-se no adro do Mosteiro de São Bento há cerca de 30 anos atrás. Depois da missa dos oblatos, nos sábados, costumávamos prolongar a conversa, pelo gosto de prolongar a doçura da convivência no Reino de Deus. Nesse dia acompanhava-me um novato, um recém-convertido: o bom Eduardo Borgerth, o excelente, o fidelíssimo Borgerth que até hoje não se afastou um milímetro da verdadeira doutrina da salvação.
NAQUELA manhã, porém, o infeliz novato quis externar uma ideia de sua pipa, e saiu-se com esta indagação modestamente balbuciada: — Não seria melhor, para os fiéis, que as leituras e algumas orações da missa fossem traduzidas?
MAL ouvira tal coisa. Dom Basílio Penido precipitou-se sobre o infeliz novato, e explicou-lhe com abundantes palavras, o sentido profundo do Latim na vida Litúrgica, demorando-se em argumentos que impiedosamente esmagaram o pobre aprendiz de Reformador.
DEVO dizer, a bem da estrita verdade, que o calor da correção paterna não diminuiu a natural e cordial simpatia de Dom Basílio Penido; e justamente por isso, ainda mais vexado se sentiu o pobre Borgerth que nunca mais abriria a boca para propor inovações na Sagrada Liturgia.
ORA, passam-se os anos, poucos, e agora tenho diante dos olhos uma carta em que Dom Basílio Penido, agora abade em Recife, anuncia a um irmão do Rio, em frases jubilosas, que já estavam rezando quase todo o Oficio Divino em vernáculo. Observe-se que o termo "vernáculo", frequentemente usado nesses casos, quer dizer "mau Português".
ESTA pequena história poderia ser, certamente, multiplicada por 1000 ou 10000. Com raras exceções, todos os padres, monges, bispos de vinte anos atrás tinham aquelas mesmas convicções de Dom Basílio, e animar-se-iam do mesmo calor para defendê-las. Ora, veio o Concílio e a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, artigo 36, diz o seguinte: "Se conservará o uso da língua latina nos ritos latinos...", mas acrescenta: "salvo direito particular". Neste tópico, como em tantos outros do Concílio Vaticano II, vê-se a mesma composição: uma parte que enuncia o princípio, e logo outra parte que se abre sobre o indefinido das circunstâncias.
NA VERDADE, o que invariavelmente aconteceu foi o que era de esperar para quem sabia que já nesse tempo entrara nos recintos da Igreja a raça dos reformadores que o Papa, numa hora de melancolia maior, chamará de demolidores. O fato é que a brecha aberta sobre o indefinido prevaleceu sobre o princípio, que ficará guardado nos museus.
JÁ RECEBI de um prelado críticas severas sobre as críticas que faço aos padres conciliares. "O Sr. não sabe que os Concílios têm assistência do Espírito Santo?"
SEI; mas também sei que o mofo humano sempre demonstrou a singular petulância de resistir ao Espírito Santo. E o que se tornou patente, e até explicitamente declarado no próprio Concílio, foi a confiança aberta como nunca na história da Igreja ao dito mofo humano. O resultado aí está. E agora somos nós outros, os acusados de fixismo e de integrismo, que esperamos e desejamos uma vasta Contra-Reforma para rearrumação da Igreja.
* * *
MUITAS vozes se levantam com maior ou menor ponderação, maior ou menor ingenuidade, mas todas com a mesma nostalgia da Ordem e da prevalência dos princípios sobre as circunstâncias. Leio no "Jornal do Brasil" de 18 do corrente uma notícia de Belo Horizonte: "O Deputado Jesus Trindade Barreto, da Arena, informou ontem que mais de 300 entidades religiosas mineiras, entre irmandades, associações e congregações leigas vão pedir ao Papa o retorno da Igreja à antiga Liturgia e aos valores tradicionais, além da criação de um cardinalato em Minas. A solicitação será feita através do Núncio Apostólico no Brasil..."
ESSE modesto apelo, que nem chegará aos ouvidos do Papa, é um balbucio que tenta exprimir a grande nostalgia do Povo de Deus por uma Religião mais religiosa do que socioeconômica, e mais representada pelos santos do que pelos guerrilheiros e contestatários que têm a devoção de padres e arcebispos da renovada e traduzida Igreja.
EU CREIO na possibilidade de uma Contra-Reforma que nos devolva o gosto de dizer: "Domine, dilexi decorem domus tuae et locum habitationis gloriae tuae": mas não creio que isto possa acontecer enquanto estão vivos e atuantes os que promoveram a hibernação dos princípios em favor das circunstâncias anarquizantes, e consequentemente a calamidade que hoje tem dimensões planetárias.
RECEIO ser necessário esperar mil anos para a reconquista de uma língua universal da Igreja, e para a restauração da Liturgia, do Gregoriano e das demais riquezas culturais e espirituais da Igreja. Sim, receio que antes de um milênio não consiga o mundo cristão defender-se da raça de térmites que hoje festeja a secularização, a protestantizacão e a dessacralização da Igreja. Mil anos, e assim mesmo se desde já começarmos a luta.