Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 6-3-75
EU NÃO ME sinto particularmente ansioso e interessado pelo que Dom Basílio Penido O.S.B. Abade Presidente da Congregação Beneditina Brasileira já escreveu ou venha a escrever acerca do recente pronunciamento sobre o divórcio de Dom Jerônimo Sá Cavalcanti, Prior do Mosteiro Beneditino de Salvador, publicado com destaque no Jornal do Brasil de 24 de fevereiro p.p. Aliás, para ser mais exato, devo acrescentar que não sinto interesse ou curiosidade por coisa alguma que o Abade Presidente da Congregação Beneditina Brasileira tenha escrito ou venha a escrever. Tempus breve est. Mas os leitores do Jornal do Brasil devem estar lembrados da dupla página inteira do jornal que, meses atrás, o Abade Presidente ocupou, para declarar que há mais de trinta anos conhecera o então recém-convertido engenheiro Gustavo Corção, e para atestar, em nome da Congregação Beneditina, que observara nesse engenheiro uma tendência ao comodismo, que o impedira de completar o curso de engenharia. Eu mesmo percorri as numerosas colunas cedidas pelo Jornal do Brasil a Dom Basílio Penido para seu desabafo, mas não consigo lembrar-me de que modo e com que matéria pode o Abade Presidente encher tamanho espaço, coisa que me traz certo vexame e talvez até alguma inveja, porque muitas vezes já me senti embaraçado de achar o Bey de Tunis que me permita cobrir área dez vezes menor de papel impresso.
Voltemos ao ponto: o leitor do Jornal do Brasil que conhece a fluência de Dom Basílio Penido e a fartura de espaço jornalístico à sua disposição, deve estar esperando com impaciência seu comentário sobre o pronunciamento de Dom Jerônimo que parece haver ultrapassado os limites de atrevimento pós-conciliar. Julgue o leitor de O GLOBO, por esta amostra que transcrevemos:
“A POSIÇÃO da Igreja em termos tradicionais é encontrar (sic) o problema da indissolubilidade do matrimônio, apenas do ângulo formal intrínseco, sem perceber que a questão essencial é a do amor. Não tem sentido um casal viver junto, quando não mais se entende, ou manter os vínculos apenas por uma imposição formal da Igreja.”
HÁ NESSE trecho do pronunciamento de Dom Jerônimo Sá Cavalcanti um aspecto que é agradável e até confortador. Não se espante, leitor, falo sério. Numa coisa Dom Jerônimo me trouxe um alívio, entre tantas aflições: ele não fala em nome da Igreja; ao contrário, ele fala vivamente agastado contra a Igreja que, na sua opinião, durante vinte séculos, vem tratando os mais graves e dolorosos problemas humanos sem a dimensão do amor e até vem impondo aos casais feridos seu duro formalismo. Dom Jerônimo torna assim patente um ponto essencial: para defender a tese do divórcio é preciso começar por declarar-se abertamente a inimizade pela Igreja católica, apostólica e romana. Torna-se assim instrutiva a declaração de Dom Jerônimo, que bem mereceu o telegrama de parabéns que lhe enviou o deputado Nelson Carneiro.
DOM JERÔNIMO ataca a doutrina tradicional da Igreja, e, portanto, ataca a Igreja em seu coração, em nome do amor. Não é a primeira vez que isto acontece. Em todos os tempos, mais vivamente na Idade Média, no esplendor do cristianismo, quis o coração do homem rebelar-se contra os mandamentos de Deus, em nome do que chamavam as Leis do Amor. Mas, entre o desvario do amor cortês, que deixou ressonâncias de grandeza nos romances de amor e morte, e o egoísmo ressecado do amor burguês, há uma diferença abismal. O amor que Dom Jerônimo entende confunde-se, simplesmente, com o prazer e é o mais anti-heroico dos amores, porque sua principal característica é a de não suportar mal-entendidos e aborrecimentos. Triste amor esse que só floresce no bem-estar e alegria. Nossa noção de amor é infinitamente mais alta do que esse impaciente e frágil amor que Dom Jerônimo quer colocar como alicerce da família.
COMO SE já não bastassem todos os amolecimentos em que naufraga nossa civilização, querem acrescentar mais este no último reduto que em 1964 teve a glória de expulsar o comunismo, em nome de Deus e da família.
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EM COMPENSAÇÃO, e a despeito de uma infeliz declaração feita na semana anterior, tivemos alguns pronunciamentos católicos em combate à nova investida feita contra a família brasileira, entre os quais destacamos o de Dom Eugênio Sales feito n’O GLOBO de 1 do corrente, com o título “Divórcio, veneno para a sociedade”. Nesse pronunciamento o Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, muito oportunamente, acentua a solicitude maternal com que a Igreja defende a lei natural e o bem da sociedade e não os prestígios clericais e interesses próprios. Assim, a boa doutrina e a verdadeira tradição católica não foram esquecidas, em tão graves circunstâncias, e os pronunciamentos caprichosos e insensatos, ainda que mais numerosos, ficaram cobertos pelas palavras mais prudentes e mais sérias. Deus seja louvado!
TROUXERAM-NOS especial alegria, no pronunciamento de D. Eugênio Sales, as referências feitas ao Pe. Leonel Franca e a José Fernando Carneiro, cujo famoso artigo Divórcio, Reivindicação Burguesa foi transcrito, na íntegra, no meu livro Claro Escuro, AGIR, de cujos direitos autorais abro mão, se a Editora o quiser difundir com mais baixo preço. Recomendo também a leitura de Divórcio em Debate, AGIR, de Maria de Lourdes Ganzarolle.