x
top of page

Eletrocardiograma



Por Gustavo Corção publicado n’o globo em 18 de dezembro de 1971


ONTEM, modéstia à parte, fiz setenta e cinco anos, fi-los eu? Foi sem querer, não foi de propósito que os fiz, ou melhor, foram eles mesmos que muito a minha revelia se fizeram, se avolumaram e se somaram. Se somaram? Não vejo possibilidade de somarem-se os dezembros de 1903 e 1904, com os janeiros, os abris, os agostos, os desgostos e os setembros, os namoros e os estudos, os momentos de vida e os relances de vida, a dor com a dor e ainda menos com o prazer. Direi dos anos então que os completei? Não sei que verbo usar para dizer que cheguei onde cheguei. Cheguei?


O FATO incontrovertido é que num remotíssimo dezembro de noventa e seis nasci. Abri os olhos e a boca para a luz e o leite que manavam do doce mundo ao derredor de mim. Mas neste mesmo nascer já chegava cansado da materna sepultura, e chorando aflorava ao regaço materno, onde nascia sem culpa minha, mas já com aquela de Adão.


COMEÇAVA desde então a rufar este mesmo coração que ontem totalizou trinta e dois milhões de pancadas. Cresci sem mérito nenhum, como crescem os gatos e as plantas do jardim.


Bão ba la lão, senhor capitão

Espada na cinta, chicote na mão.


MENINO armado cavaleiro, na aurora da minha vida, da qual não tenho sequer capacidade de ter saudade, o menino montado no cavalo ajaezado de sonhos não sabia que combates combateria com o chicote e a espada, não sabia se chegaria a capitão, ou até se um dia seria apontado, indigitado, acusado de ser um Gustavo Corção, que no cartório e no banco ainda acrescenta: Braga.


Bão ba la lão, senhor capitão

Espada na cinta chicote na mão

Bonito menino, cavalo azulão.

Passam-se assim os abris, os dezembros,

Esfriam os junhos, amornam os

[setembros,

Bão ba la Ião...


UM DIA num dos espelhos por ai espalhados na vidraçaria da vida, dou comigo mesmo e sinto a primeira pontada que corro a registrar, com medo de perder aquele instante de amor, aquele instante de vida, aquele instante de dor. E então o moço louro, autor de si mesmo, debruçou-se e balbuciou seu primeiro eletrocardiograma.


No peito o coração marca o compasso

Do descompasso

Deste passo com que vou sem saber

[onde vá

Nem saber de onde vim

Sabendo apenas que passo

No descompasso

Do compasso

Que no peito me marca o coração

Bão ba la lão, Gustavo Corção

Que é coração sem o a.

E o coração continuou.


* * *


COM mais dez milhões de pancadas escrupulosamente batidas chegamos juntas a Mato Grosso, somos engenheiros, e o século, em volta de nós, procura recompor-se de um ataque de loucura.


ENCONTRO-ME comigo cara a cara, peito a peito, objeto e sujeito, e o eletrocardiograma registrou.


No peito o coração marca o compasso,

Metrônomo, marca o compasso

Do descompasso do passo .

Com que passo sem saber onde vou

E sem saber quem sou

A não ser do que diz a certidão:

Gustavo Corção, coração sem a,

Bloqueio do ramo esquerdo.


MAIS dez milhões de pancadas docemente obstinadas dou comigo mesmo andando a esmo a interrogar e a procurar quem me desse o perdão de minhas culpas além daquela de Adão. E vi-me sentado e chorando as lembranças de Sião, e quanto nela me achei.


Bão ba la lão, Senhor grão Capitão

A vós só me quero ir

À alta Torre de Sido

À qual não posso subir

Se -me vós não dais a mão.


DEU-ME Deus ao coração o ensejo de bater mais um milhão e realizar meu desejo de chegar ao perdão de minha culpa além daquela de Adão. Menino pródigo estou na casa do Pai.


Na mão de Deus, na sua mão direita,

Descansou afinal meu coração.


DESCANSOU?! As raposas têm suas tocas, as aves seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem pedra onde descansar a cabeça. Nem pudestes rezar comigo uma hora? Rezai, vigia: para não cairdes em tentação.


Bão ba la lão, senhor capitão

Espada na cinta, chicote na mão

Malbourough Corção

S'en va-t-en guerre

No seu ginete alazão.


Que guerra? Que cruzada, se acabaram:

Que bandeira, se as dobraram?

Poderei ao menos sentado

Chorar lembranças de Sião

Em terras de Babilônia?


Como poderá cantar

Quem em choro banha o peito

Porque se quem trabalhar

Canta por menos cansar

Eu só descansos enjeito


Que não parece razão

Nem seria cousa idónea

Por abrandar a paixão

Que cantasse em Babilônia

As cantigas de Sido


Eu só descansos enjeito

Dói-me o peito

E o coração marca o compasso

Do descompasso

Deste passo com que vou sem saber

[onde vou

Sem saber o que sou, a não ser na

[certidão

Que reza Gustavo Corção

E Braga no banco e no tabelião.


Bão ba la lão, senhor Capitão

Espada na cinta, chicote na mão

Menino bonito, cavalo alazão.


ONDE está o menino que prometia tanto e parecia trazer ouro em pó nas pupilas abertas para tudo. Onde está o menino? Onde o cavalo?


EI-LO ali depois de trinta e dois milhões de pancadas do mesmo coração obstinado a marcar o compasso do mesmo descompasso.


Bão ba la ião, senhor Capitão,

Ei-lo acolá o menino dourado

Ei-lo aqui agora apontado, indigitado

Acusado de ser Gustavo Corção

E de ainda querer ser Braga

No banco e no tabelião.


No peito o coração marca o compasso

Do mesmo passo

Trinta e dois milhões, salvo erro,

De compasso batido do mesmo des-

[compasso.


Bloqueio do ramo esquerdo.

Mais um milhão, Senhor Grão Capitão.

Parou? Não. Passou. Sem saber onde vá.

Bão ba la lão

Continuou. Gustavo Corção.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

É proibida a reprodução total ou parcial de textos, fotos, ilustrações ou qualquer outro conteúdo deste site por qualquer meio sem a prévia autorização de seu autor/criador ou do administrador, conforme LEI Nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

bottom of page