Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 21-8-75
VOLTANDO AO POSTO, depois de uma inesperada excursão no país da cirurgia tenho a alegria de comunicar ao leitor que Jean Madiran, convidado por nós, se acha no Brasil para troca de contatos com os companheiros de luta. Jean Madiran é, sem sombra de dúvida, um dos principais lutadores em defesa de todos os valores de civilização e de religião que estão sendo agredidos no mundo moderno. Sua obra principal é a revista Itinéraires que, há quase vinte anos, congrega os melhores escritores católicos de língua francesa. Para nós, a presença de Madiran tem uma significação toda especial, porque nos momentos de extrema agonia, quando ainda em pleno Concílio nos parecia que os três mil bispos do mundo se haviam reunido principalmente para rejeitar a Tradição e destruir a Igreja Católica, foi naquela revista que encontramos o estímulo para resistir e para esperar que a causa santa não estivesse perdida.
NESSE TEMPO já havíamos escrito Dois Amores – Duas cidades, um estudo em dois volumes para mostrar que o Humanismo renascentista representava uma trágica ruptura da civilização cristã em favor de um culto do homem que representava, no curso da História, uma réprise do pecado original. Os homens se gabavam de uma descoberta do homem, no momento preciso em que se extraviavam de sua alma. Toda a Idade Média está marcada por uma preocupação de vida interior e do homem interior que Etienne Gilson chamou de socratismo cristão e de antifisicismo da Idade Média. O Solilóquio de Santo Agostinho é simbólico a esse respeito. Agostinho dialoga consigo mesmo e, de início, diz que quer conhecer duas coisas: Deus e sua alma. Quando a Idade Média agoniza, logo após o apogeu do décimo terceiro século, “o maior dos séculos”, o primeiro sinal que se observa é a corrupção da inteligência pela corrente nominalista que representa a ruptura entre a inteligência e o ser. Encerrando o capítulo deste episódio da Folosofia, o historiador espanhol Guilermo Fraile toca o sino de alarme com esta conclusão que nos dá calafrios: “no fim do século quatorze se ensinava nominalismo em todas as universidades da Europa.”
O PREJUÍZO MORTAL trazido por essa corrente atinge a grande sabedoria e torna impossível a formulação dos mistérios cristãos e o serviço da Teologia, mas talvez se possa dizer que o desastre ainda maior atingia a pequena sabedoria do senso comum em favor de um cientificismo que a humilhava e a degradava. E foi nesse estado de espírito que os homens se exaltaram com a descoberta do homem exterior, que por essa subversão trazia ao universo moral uma nova temperança que não comportava a companhia da santa humildade.
FIRMARAM-SE ASSIM os princípios de uma nova civilização: o humanismo na ordem intelectual e o triunfo do amor próprio, isto é, a desordem do amor na ordem moral.
NÃO ERA DIFÍCIL PREVER que uma civilização, assim começada, alargaria seus erros e se afastaria de Deus: mas, naquele tempo (1967), nós ainda nos apegávamos a um otimismo de influência maritainiana e dizíamos com Mons. Journet que “une nouvelle chrétienté demande a naître”. Nesse tempo, ainda durante o Concílio, começaram a aparecer por toda a parte, em torno de nós estranhos e desvairadas agressões ao quarto mandamento. Nas homilias da Missa dominical, em nossa paróquia, um padre moço dava saltos de exaltação gritando “ainda vêm mais reformas”, e lançando apóstrofes contra os Pais. Desencadeava-se uma obscena exaltação do o jo-o-ovem. E diante de tal espetáculo de pesadelo, que hoje ainda repasso com calafrios, parecia-nos que tudo estava perdido e que a Igreja Católica tinha renunciado à sua missão.
LOGO EM SEGUIDA tornou-se manifesto que a Conferência dos Bispos do Brasil insistia em fazer profissão de fé diferente e até oposta à católica. Um tal espetáculo nos convenceu de que nossa posição teórica, em relação à estrutura da civilização moderna, tinha sido de muito ultrapassada e merecia estudo atento a sua realidade atual.
FOI DEPOIS DA FUNDAÇÃO do movimento Permanência que nos sentimos compelidos ao estudo deste “siècle des dupes”. Valeram-nos, principalmente para a descoberta dos valores que nos tinham sido escondidos, a leitura de Jacques Marteaux: Les catholiques dans l’inquietude e Les catholiques dans la tourmente; Henri Massis: Charles Maurras et notre temps, Pierre Virion e, torno a dizer, os grandes números da revista Itinéraires, do centenário de Charles Maurras e da recensão do Paysan de la Garonne do Jacques Maritain. Nesses anos de 71 e 72, creio ter estudado e lido mais do que em todas as épocas da minha vida, para conseguir desmitizar tantas imposturas e tantas falsificações do século, e escrevi O Século do Nada para registrar esse estudo, e foi nesse árduo trabalho que tive a felicidade de aproveitar um resto de vista de que dispunha ainda; foi nas lides diárias e nos combates que se passavam dentro do meu escritório com uma credulidade difícil de imaginar, foi nesse tempo de paixão e de tormenta que tive a felicidade de sentir que não estava só, gritando ao vento. Jean Madiran é, desde essa época, para mim, modelo do lutador que me trouxe conforto, apoio e estímulo. Por isso, quando fui à Europa, ao congresso do Office International, em Lausanne, em 1973, passando por Paris, pude dizer ao telefone, não querendo incomodá-lo, essas palavras verdadeiras, que soldaram a nossa amizade: “Je prie Dieu tous les jour la grace de partager votre souf-france”. Ficamos amigos e companheiros de luta do bom combate e hoje, recapitulando todas as suas grandes campanhas: contra as aberrações do catecismo, as subversões da liturgia e as falsificações das Escrituras, e os grandes números de Itinéraires sobre Charles Maurras e sobre o Paysan de la Garonne, podemos tornar a dizer que Jean Madiran é realmente um dos mais altos lutadores que fazem frente à onda de anarquia e corrupção que nos anuncia um limiar do Apocalipse.
NÃO É EM TERMOS de esperança humana que presto esta homenagem a Jean Madiran, mas em termos de testemunha do Cristo, em termos de Esperança teologal.
E POSSO DIZER que essa grande voz, desde os primeiros momentos, ressoa dentro de nós como ressoaria a palavra de um São Paulo: ardente, excessiva, penetrada de amor.