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Liberación



Por Gustavo Corção,

publicado n’O Globo em 22-03-1973


QUANDO em 1969 os tanques soviéticos entraram em Praga esmagando patriotas tchecoslovacos, e, estrangulando a tentativa de libertação de um grande povo, os nossos bravos "intelectuais" das esquerdas, obedecendo cegamente a uma ordem emanada do comando supremo, lançaram o lema "Socialismo é Liberdade", que a todos os homens de bem pareceu ultrapassar todas as formas paroxísmicas, vistas ou sonhadas, do cinismo. Nélson Rodrigues que, como todo mundo sabe, é um colecionador de obsessões, vive até hoje hipnotizado, a repetir seu estupor diante de tão planetária desfaçatez.


* * *


ORA, creio estar hoje em condições de trazer uma débil luz para o mistério de tal monstruosidade, porque levo, sobre o comum dos mortais, a desvantagem de folhear e, até, às vezes ler, a caudalosa logorreia "progressista" que na infortunada América Latina nasceu das ligações do comunismo e da anti-Igreja. Neste penoso ofício pude observar que os dois vocábulos mais repetidos em todas as centenas de revistas ou livros que vejo por semana são "hoy" e "liberación". Mantenho-os em espanhol para bem assinalar a região do continente onde medram.


A ILUMINAÇÃO ou estalo veio-me hoje quando li um livrinho de Ovídio Perez Morales chamado "Liberación — Iglesia Marxismo". Antes de comunicar ao leitor o que achei nessa obra, quero trazer-lhe o resultado do meu estalo ou iluminação. Compreendi. O nosso bravo mundo liberal e suicida, liderado pelos povos de língua inglesa, durante quase um século tem criticado o socialismo e o comunismo com um só critério: o das liberdades exteriores do homem. O liberalismo, como sabemos, relativiza a verdade e o bem, cujas noções entrega às baratas, para absolutizar a liberdade exterior que seria a mais alta categoria humana. Entrando no jogo dos disparates, que técnica usará o inimigo que investiu todo o seu "O Capital de Karl Marx" na Sociedade Anônima da Burrice Humana? A técnica de gritar mais alto o mesmo termo e de levá-lo até o grau extremo de saturação. Com isto logram dois proveitos: o primeiro é o de levar o termo ao mesmo grau extremo de exaustão; o segundo será o de sempre associar o termo "revolução" ao que restar de nobre e inteligível no termo "liberação".


PARA fazer um teste de minha descoberta telefonei a um amigo a quem emprestara o livro do Pe. Comblin, intitulado: "Teologia da Revolução", para que ele me fizesse a caridade de partilhar comigo a dieta que Pedro sonhou em Joppe. E disse-lhe:


— Você poderá agora fazer-me o favor de correr os olhos pelas páginas desse livro para verificar se o termo liberación aparece tantas ou quantas vezes por página?


— NÃO é preciso, temos melhor.


EFETIVAMENTE era mais do que eu pedia o que me deu o amigo: a entrevista do dito Pe. Comblin publicada em Opinião de 12-19 do corrente, intitulada: Teologia da Libertação. Lembro aqui o título de outro livro a que tempos atrás permiti, a título de ilustração dos disparates da época, a honra de figurar neste jornal, e nesta coluna: "Jesus Cristo Libertador".


NO librito que tenho diante dos olhos, até onde entendi a algaravia, também é dado a Jesus Cristo o título que se costuma dar a Simon Bolivar na América Latina: libertador. Jesus veio libertar. Muito bem. Até aqui milhões de cabeças de todas as cores dão assentimento. Veio libertar do pecado. Ótimo. Os milhões de cabeças cristãs — se chegam a tanto — balançam afirmativamente com maior convicção. Mas no sol das coisas de que nos viera liberar, libertar, ou livrar, surgem logo coisas que não têm nenhuma homogeneidade com o relacionamento Homem e Deus. Jesus Cristo seria também o libertador dos marginais, dos barnabés, dos indígenas do terceiro mundo, dos funcionários não promovidos, e daí por diante, deixando a esfera econômica, delineia-se mais ampla a missão do Libertador. Ele veio libertar o homem também dos mitos, dogmas e mandamentos, e dos tabus, heterossexuais ou homossexuais.


SE a minha teoria é verdadeira, já podemos tirar aqui um corolário importante. Se a difusão do termo até o limite extremo da saturação é uma defesa contra o anticomunismo liberal, será também um hotel de alta rotatividade, onde se encontrarão marxistas e "progressistas". E, com esses dois proveitos do termo lançado até a saturação, os revolucionários entram facilmente em qualquer lugar e trazem de arrastão todos os incautos.


PARA não melindrar ninguém, não direi que os membros da CNBB são incautos. Abstenho-me de qualquer adjetivo e jejuo de qualquer advérbio, mas comento o fato: a última reunião da dita CNBB esteve toda embebida em liberacións, e deixou o "slogan" para a campanha da fraternidade, onde se vê que o vírus penetrou naquela assembléia. Os centros de comando revolucionário insistem no uso do vocábulo, e por isso nenhuma assembleia episcopal que queira estar bem engrenada no século não poderia ficar alheia a esta moda de usar os vocábulos, o slogan escolhido foi: "O egoísmo escraviza, e o amor liberta".


É FÁCIL mostrar o inconveniente do uso de termos carregados de ambiguidades. Eu posso usar o slogan inverso, que me parece mais exato: "O egoísmo produz liberdades; o amor prende". Basta colocar as tais variadas liberdades no honrado plural para logo se evidenciar que elas são mais depressa obras da malícia que das virtudes. Quanto ao amor, convém lembrar que há o bom e o mau amor. A única coisa de comum que têm é que ambos vinculam, prendem, unem, para o bem ou para o mal.


O SLOGAN da CNBB, para fugir às fórmulas tradicionais que se polarizam na Verdade e no Bem, entrou no brouhaha atordoador com que a Revolução Mundial quer destruir a Igreja e liberar os homens de sua incômoda dignidade.


O QUE é realmente triste para nosso coração católico — meditemos nisto durante esta quaresma — é a subserviência dos homens da Igreja ao linguajar induzido pelos inimigos. Homens da Igreja ou da Anti-Igreja?


Só Deus sabe.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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