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Monogenismo e Poligenismo


Por Gustavo Corção publicado,

n’O Globo em 28 de setembro de 1972


É ANTIGO e irredutível o debate em torno do problema e o mistério da origem do homem. No esplendor do cientificismo dos séculos passados, VIII e XIX, a questão foi estridentemente colocada em termos de antagonismo entre Religião e a Ciência.


DE UM lado estariam, como até hoje efetivamente estão, os católicos que criam e creem na criação supernatural e sobrenatural de nossos primeiros pais Adão e Eva; de outro lado estão os que evocam a Ciência e creem encontrar nela um refulgente desmentido da revelação divina e do credo católico. Podemos armar os termos do debate em sua forma convencional: criacionismo versus evolucionismo; monogenismo versus poligenismo; Religião versus Ciência.


NA VERDADE, porém, a controvérsia se trava entre dois campos religiosos. Não há nem pode haver Ciência capaz de desmentir nem capaz de provar as verdades religiosas que são de outra ordem. Também não há nem pode haver Ciência alguma que prove e cabalmente explique as origens do homem, as origens da vida, as origens universo por que, se a Ciência do fenômeno tem como critério único a experiência e a evidência do fato, por isso mesmo ela não tem nada dizer sobre objetos ausentes e passados. Por extraposições indevidas poderá balbuciar hipóteses; mas se se começa a fazer em provas e certezas, já não o faz com critério científico, e sim com critério religioso.


SIM, na verdade, tudo o que se tem dito, sobre a origem do homem nos arraiais do cientificismo não tem nenhuma base sólida, consistente e honesta nos dados observados, nem foi dito por motivações científicas. Ao contrário, tudo o que foi dito nessa matéria obviamente acessível à observação só teve o objetivo de contrariar dados da revelação. Há, portanto teologia nos dois campos. De um lado a religião que professa sua adesão a um dado revelado e que se inclina diante da intimativa primeira de Deus no de fé, de outro lado a religião que quer negar o próprio Deus, e para isto tem necessidade de montar e aparafusar sistemas de hipóteses mais ou menos divertidas.


ESTAMOS todos diante de um fato bruto unanimemente aceito: os homens aí estão, e cada vez mais. Em volta desse abstrato ser está o mundo inorgânico, e mais perto o mundo vivo, e ainda mais perto o mundo animal.


A PRIMEIRA observação que nos ocorre é a de certa semelhança entre o homem e a minhoca. Cientificamente essa semelhança será triunfalmente apregoada em termos da onipresença de átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio em construções moleculares semelhantes. Maior ainda é a semelhança entre o homem e o seu fiel admirador o cão; e ainda maior é a que se observa entre o homem e o macaco.


A SEGUNDA observação que se impõe, e que ultrapassa os limites das ciências naturais, é a do comportamento desses seres semelhantes. Ora, no campo do humano, temos o quinteto em sol menor, K.516, de Mozart, temos a Suma Teológica, e toda a imensa variedade de ferramentas com que o homem domina e domestica (Saint Exupéry diria "apprivoise") o mundo inferior e exterior. A cultura, a prova do pensamento abstrato, a Torre Eiffel — tudo isto nos diz veementemente que o homem se separa do gênero animal por uma diferença específica que reside na racionalidade, ou na substância espiritual da alma humana.


E AQUI cabe um reparo: quanto mais provarem o primeiro fato observado, isto é, a semelhança que nos aproxima do macaco, mais veementemente provam a necessidade de buscar outra dimensão que explique a infinita diferença de comportamento.


MAS é forçoso convir que, no polimórfico comportamento humano, há um aspecto melancólico que anuvia os aspectos gloriosos: o homem é capaz de se alegrar, e de se julgar mais inteligente, mais lúcido, mais científico, precisamente quando está negando a inteligência propriamente dita. Paradoxos da idolatria dos tempos modernos: para firmar-se um deus, suficiente, pleno de si mesmo, o homem se afirma uma besta, e pausadamente, didaticamente, ensina aos seus filhinhos, nos museus, nas escolas, e hoje nas igrejas, que somos apenas umas bestas mais engenhosas e mais perversas do que nosso doce amigo cão.


* * *


DISSE atrás que antigo era o debate entre a posição conscientemente religiosa e a outra, inconscientemente religiosa.


O QUE é moderno nessa longa e disparatada controvérsia é a posição trazida pelos "novos" católicos, e por eles tida como extremamente inteligente. Quando no domínio da Ciência séria e honesta começa a cheirar mal o evolucionismo, que já está desvendado como Religião ou contra-Religião, nossos bravos progressistas se precipitam sobre o vômito dos cientistas desalentados.


DIAS atrás, num debate público, um monge eruditíssimo declarou tranquilamente que o monogenismo está hoje superado. Esse erudito certamente pensa, ou pensa que pensa, que isto é mais inteligente do que o credo católico. Ora, eu pergunto: se admitirmos que o homem seja um ser essencialmente superior a todo o mundo físico, se admitirmos a necessidade de um agente e de um milagre narra a emergência do Homem, então, pelo amor de Deus, me explique o erudito monge a razão que o leva a achar que mil criações supernaturais e sobrenaturais espalhadas no mundo são mais plausíveis do que uma só. E explique-me como conciliar esse poligenismo com a Epístola aos Romanos, cap. V. E explique-me a vantagem desse poligenismo para a coesão da fé.


RECEIO que nosso erudito esteja realmente convencido de estar atingindo o fino da sabedoria no momento exato em que exalta e apregoa a desumanização do homem, a começar pelos eruditos da nova Igreja.

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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