Por Gustavo Corção publicado n’O Globo em 24 de fevereiro de 1972.
A MINHA preparação para uma espécie de retiro, que pretendia fazer no começo da quaresma, foi bruscamente interrompida pela brutal notícia da morte de meu querido Moacyr Padilha, tão moço, tão forte, tão belo e tão bom, que em 4 meses foi„ devorado pelo câncer mais cruel e voraz de que já ouvi falar. Fui visitá-lo na Casa de Saúde poucos dias depois de uma inútil intervenção cirúrgica, e logo que me assentei a seu lado e que vi seu rosto marcado tive a certeza de que a morte já se apoderara dele, e o que eu via era ao mesmo tempo lancinantemente doloroso e misteriosamente consolador. Já duas vezes vi morrerem moços, em todo o esplendor da vida, e naquela tarde de meses atrás eu via pela terceira vez a mesma coisa misteriosíssima que duas vezes já me aparecera em rostos muito amados. E o que eu via era mais do que uma doçura resignada, mais do que humildade de um coração bom — era uma velada mas bem perceptível alegria que não se iluminava com as luzes deste mundo. O leitor incrédulo dirá que estou aqui fazendo má literatura à custa de um moço tão profundamente e tão magnanimamente chorado. Estou, isto sim, tentando dizer o indizível, mas Deus sabe que não minto se ainda acrescentar que, nesse momento único que vale por todos os anos de amizade que não tivemos, também ele compreendeu o que eu compreendera. A família em volta da cama, todos em atitude tensa lutavam para não dar ao doente um só sinal. Ele mesmo, provavelmente, também lutará depois com terrível sofrimento, também se crispará, mas naquele instante fugaz em que me olhou, me sorriu, e pegando-me a mão beijou-a furtivamente como menino bom que se despede de um pai, naquele instante decisivo eu creio que nosso querido Moacyr aceitou a vontade de Deus, como também creio que a luz de bondade que passou por seu rosto já emagrecido foi um sinal do agrado de Deus. Fugi. Não voltei a visitá-lo, talvez por covardia, mas também por saber que nós já não tínhamos mais nada a dizer neste mundo; e a ideia de apagar em mim aquele relâmpago de eternidade era insuportável.
* * *
DISSE atrás que a morte de Moacyr Padilha, bruscamente anunciada na 5ª ou 6ª feira passada, interrompeu minha preparação de quaresma. Agora retifico: essa morte trouxe uma dimensão nova para o meu pobre e mesquinho retiro. Trouxe-me a ideia de imitar em cada instante de meu dia aquele instante em que Padilha se mortificou, isto é, se desprendeu.
ANTES de morrermos pela inglória decomposição de nosso corpo, ou pela atitude amotinada e desordenada de algumas moléculas de proteína, Deus espera de nós as mortificações voluntárias, pequeninas, mil e mil vezes entremeadas em nossos afazeres, e até mesmo em nossas orações exteriores demais. Deus espera de nós o que muito poucos têm a coragem heroica de dizer.
Esta vida que yo, vivo
es privación de vivir;
y asi, es contino morir,
hasta que viva contigo:
oye, mi Dios, lo que digo
que esta vida no la
[quiero;]
que muero porque no
[muero.]
NÃO SE diga daí que o homem é um ser para a morte. Longe disso, é um ser para a vida, mas vida plena e não esta passagem num mundo velho e exausto em que viver "es privación de vivir".
POR ISSO ensinam-nos os mestres espirituais a fina arte da mortificação que consiste em desfazer as mil e mil malhas que tecemos em nosso não viver e que nos impedem de viver desde já a nova vida que um dia teremos na clara terra dos ressuscitados.
POR ISSO, na ansiedade de voar, cortamos os fios, ou devemos cortá-los, levando esse desejo multiplicado mil e mil vezes até os vasos capilares de nossa vida terrestre. Ensinemos a nossa alma temerosa da escuridão, ao nosso pobre corpo crispado, essa prática de querer Deus continuamente, pelos poros, diria até essa prática de querer Deus em nível molecular. Só assim desde já começaremos a viver a vida dos ressuscitados, porque só assim evitaremos que um só instante de nossa vida e uma só partícula de nosso corpo queiram prender-se a este viver "que es privación de vivir".
MIL E MIL vezes morramos, voluntariamente, com ímpeto de amor para podermos dizer com altivez ao câncer: onde está teu aguilhão? Morramos mil vezes nesta Santa Quaresma para ressuscitarmos com o Rei do claro país dos ressuscitados. A Páscoa e a Quaresma nos são oferecidas pela Igreja como clima espiritual favorável a essas mortificações que constroem e que nos preparam para a Páscoa das Páscoas.
O TERMO parece negativo e triste: mortificação; mas este é apenas, entre muitos, um exemplo da linguagem espiritual que —como ensina Garrigou-Lagrange — é sempre hiperbólica e antitética, e muitas vezes, por provocação, diz o contrário do que quer dizer. Não há no desejo espiritual de mortificação nenhum pessimismo contrário à boa doutrina: há apenas a expressão de um vigoroso anseio de outra vida mais plena — aquela que levava São Paulo a clamar: "Vivo eu?! Não. Vive Cristo em mim."
Há até, diria eu, uma veemência de Esperança nesse termo que a muitos parecerá envolvido em crepes: mortificação. Se não nos mortificamos, mil e mil vezes por instante, como respiramos como nos pulsa o coração não decolaremos e não estaremos prontos para ressuscitar com Cristo Nosso Senhor. Seremos então apanhados no meio da vida no flagrante apego por um vida "que es privación de vivir".
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EU TENHO a consoladora " impressão de que nosso querido amigo Padilha não se deixou surpreender por um câncer cruel e vulgar. Antes de se submeter seus tentáculos creio ter adivinhado que já se mortificara e que na profundidade da alma já escolhera a vida nova com Cristo na terra dos ressuscitado: já fizera sua Páscoa. E peço a Deus que sua família e seus amigos vivam essa quaresma de luto com mortificação que nos enche de Esperança e de desejo de viver outra vida além e acima "deste contino morir".