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Mundo, Mundo….

Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 23-04-77


ENTRE OS BELOS CANTOS Eucarísticos do grande poeta místico que foi Santo Tomás de Aquino, vêm-nos à memória estes versos “Solum expertum potest scire quid sit Jesum diligere“.

TRADUZIMOS, SEM SABERMOS TRADUZIR o sabor original: “Somente aqueles que o experimentaram podem saber o que seja o amor de Jesus”. Ou, “somente os que por experiência sabem…”

TODOS OS MESTRES MÍSTICOS ensinaram que a contemplação infusa é uma “quase experiência de Deus”. Por que “quase?” Este termo que parece restritivo, e, portanto, impróprio para definir a mais alta de todas as aventuras da alma humana, a subida do Carmelo ou do Calvário, nas pegadas de um Deus que por nós se deixou crucificar. E por isso mesmo, aliás, que nunca poderemos encontrar termos próprios para exprimir a sobrenatural aventura. A linguagem dos místicos inevitavelmente hiperbólica, antitética e metafórica; e é aqui, mais do que na poesia, que se aplica o que disse Rimbaud: que tentava dizer o indizível.

NO CASO EM QUESTÃO, Santo Tomás ousa empregar o termo “experimentar” quando canta, mas seus discípulos, quando tentam explicar o canto de amor em linguagem especulativa, recuam diante do tempo que traz sobre si uma pesada carga de conotações empíricas e carnais. E até ensinam que na subida do caminho da perfeição o desejo de experiências sensíveis, sejam elas  embora feitas do mais piedoso afeto, constituem pedras de tropeço, e até às vezes atrasos e retrocessos, porque nelas a alma se demora e se compraz no sabor e nas consolações de tal afeto. Ora, não foi este o exemplo que Jesus nos deixou na subida do Calvário. A subida mística só se fará se deixarmos para trás o lastro de terra e de carne, e se, corajosamente, aceitarmos a purificação da noite dos sentidos. Daí se explica a reserva dos mestres quando falam mais na pauta especulativa do que naquela da “experiência” ou “superexperiência” vivida na união com Deus.

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MAS AGORA, CAÍDO EM MIM de tais alturas que tanto desejara ter alcançado, e das quais só ouso falar com ciência de empréstimo e de desejo, imagino o leitor a interpelar-me: —A que vêm todas essas considerações em torno da experiência mística, e dos cantos eucarísticos de Santo Tomás, quando falávamos da agonia da Espanha, e esperávamos comentários das efervescências racionais em torno da denúncia em boa hora levantada por Dom Sigaud sobre a infiltração comunista na CNBB?

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NA VERDADE, LEITOR, TUDO o que toca nossa Santa Religião tem aquela marca antitética da Cruz. O belo canto eucarístico de Santo Tomás nos veio por antítese da matéria ingrata que se impõe à nossa consciência como dever de testemunho. O fato é que daquele canto de amor (somente quem o provou sabe o sabor que tem o amor de Jesus) veio-nos, num contraste abismal, a idéia horrível da “experiência” que o mundo vem fazendo, e a cujas infinitas conseqüências o mundo dia a dia se entrega com uma apavorante submissão: a experiência do mal erigido em sistema, ou se quiserem, a experiência do ódio de Satã. É verdade que somente no inferno terão as almas perdidas a ciência mais exata do que seja o ódio de Satã. Mas o fato é que aqui, na terra, neste belo planeta azul que talvez seja o único habitado por seres racionais, capazes de louvar a Deus, e capazes de recusar seus dons, a humanidade já teve várias amostras daquele ódio, e várias vezes já assistiu ao espetáculo da maldade erigida em sistema, com bandeiras e hinos que traziam a tal sistema o luxo da glorificação. O mundo encheu-se de saber, de saborear os horrores de que recentemente foram capazes os nazistas em torno de uma Idéia; o mesmo mundo encheu-se de saber, de experimentar os horrores praticados pelos anarquistas e comunistas em torno de uma Idéia.

HOUVE TEMPO EM QUE, com raríssimas exceções, o mundo inteiro julgou que Hitler e seus companheiros tinham atingido à máxima crueldade jamais praticada oficialmente e sistematicamente por um regime; atrás da aparatosa e triunfal crueldade do nazismo, seu cúmplice monstruoso esteve agachado, eclipsado, taciturno e ignorado.

TENHO PARA MIM QUE TAIS maldades organizadas e coletivas ultrapassam as forças humanas e não são praticáveis sem a ajuda de Satã, não dispondo, porém de um meio de medir, em unidades satanométricas, o grau de satanismo em cada caso, não sei qual dos dois monstros foi em si mesmo o pior, mas hoje não hesito em declarar que, para o mundo, e para o desenrolar do século o comunismo foi e continua a ser a pior das experiências políticas feitas e ainda descaradamente proposta aos homens. Como se explica então que tão hedionda evidência não seja reconhecida universalmente? A razão de tal cegueira, que é cômica numa nação rica, forte e engenhosa, como os Estados Unidos, e que é trágica sem deixar de ser cômica nas hierarquias eclesiásticas, talvez esteja nos quatro ou cinco séculos de humanismo liberal, mais ou menos integral, que afastou de Deus uma humanidade voltada e fechada sobre si mesma. Ora, os homens que se afastam e se tornam insensíveis às “experiências” do amor de Deus, no mesmo passo se tornam insensíveis àquelas do Demônio: e por isso serão capazes de abrir os braços ao comunismo com o entusiasmo que se observa nas Conferências Episcopais, e são capazes de aplaudir o humanismo ateu com a ardorosa e declarada simpatia que, para nossa infinita tristeza, ficou registrada entre os pontos notáveis deste brilhante século em que os homens demonstraram tão extraordinária faculdade nas experiências dos átomos… E é em nome dessa Ciência que dia a dia se acelera a desintegração de um mundo que já foi cristão.


*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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