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Não só de blábláblá vive o homem


Por Gustavo Corção,

publicado n’o Globo em 20 de novembro de 1972


O ARISTOCRÁTICO anarquista russo Príncipe Pedro Alekseewich Kropotkin, nos últimos anos do século passado, fez uma sensacional descoberta: o homem para viver precisa de pão. Perturbado pela interpretação que dera a certas palavras misteriosas e antigas, que pareciam subestimar o papel do pão no sustento da vida terrena, o príncipe russo exaltou-se com a evidência da necessidade do pão, e começou por espalhar ideias que espalhariam pão pelo mundo. Declinou cargos que lhe pareciam odiosos "quando a tanta gente em volta de mim falta uma migalha de pão". Escreveu milhares e milhares de palavras para insistir na necessidade primordial do pão, sem a menor concessão à manteiga para "barrar-lhe por cima", e sem nenhum apoio no bom-senso de cheiro aristocrático que enuncia assim o princípio de identidade: pão-pão, queijo-queijo. Nada de queijo. Pão. Pão. Pão. Ou melhor words, words, words.


HOUVE uma revolução. Assassinaram-se os aristocratas suspeitos de possuir manteiga. Depois, numa genial reforma agrária, assassinaram-se os camponeses que se obstinavam em semear e colher o trigo como por milênios tinham semeado e colhido. Houve então uma fome geral na URSS, que, entre 1926 e 1930, matou mais gente do que as duas guerras somadas. O povo russo foi a primeira vítima das oligarquias e das sociedades secretas que fizeram uma revolução para destruir a civilização lírica onde se repetiu milhões de vezes que "não só de pão vive o homem", e para instaurar uma nova super sociedade de homens oficialmente e fartamente empanzinados. Mas em vez de pão trouxeram o nada. Por isso se chamavam de niilistas. E depois de terem sido socorridos pelos mesmos povos que continuavam a reafirmar os direitos da manteiga e do espírito, os revolucionários chegaram hoje, 1972, "hoy", a esta brutal evidência publicada em 23 de agosto de 1972 pelo Izvestya: "É espantoso que até agora a amarga experiência dos passados anos não tenha inculcado aos agricultores a necessidade da eficiência."


O FATO, singelo e monstruoso, se impõe: os co-socialistas da infortunada América Latina conseguem arte de semear, de colher, e a arte subsequente de amassar o pão. Estão sem pão. Sim, sem pão.


O REGIME se debate num palavrório que é excrementício, mas que nem para estrumar a terra tem serventia.


DURANTE o verão deste ano, uma campanha de poupança de pão foi lançada na União Soviética. Os padeiros receberam instruções para diminuir os pães e as broas, e em Moscou diversos programas de filmes documentários se organizam na "Batalha do Pão", para ensinar o povo a não esbanjar o pão que lhe não sobra, e não dar aos animais os restos do pão que não tem.


O ESPETÁCULO seria de um cômico prodigioso, se na pantomima não estivesse envolvido um pobre povo imbecilizado por oligarcas e por sociedades secretas que querem, a partir do Caos, corrigir a obra mal feita de Deus.


NÃO HÁ, efetivamente, em toda a história, aventura mais ridícula do que esta consagração do pão pelo estúpido orgulho dos homens: e agora, mais do que nunca, o que superabunda no pobre mundo atingido pela Moléstia são as palavras consagratórias do nada.


NO CREPÚSCULO tempestuoso deste século de grandes empulhamentos, é o caso de respondermos nós ao fantasma de Kropotkin e aos fantasmas menores dos imbecis que o acompanharam. Não é muito ortodoxa a ideia de um Purgatório especializado para a estupidez socialista, e sua inseparável malícia (ver Suma Teológica, IIa. IIae.. Qu.46), mas eu o imagino cheio de almas em movimento perpétuo de esquivança. Nenhuma tem coragem de encontrar e defrontar as companheiras de tão inacreditável burrice. E imagino um Kropotkin infinitamente chateado a resmungar sem pausa: não me falem de pão! Não me falem de pão!


VOLTO à ideia: é nossa a hora de dizer aos parvos esquerdistas de todos os continentes: não só de blábláblá vive o homem; queremos pão. Pão e manteiga. Pão-pão, queijo-queijo, e não CIEC'S, e não CELAM'S, DEC'S, CLAR'S todas as siglas com que os monistas desaprenderam a adicionar, às injúrias feitas ao bom-senso, à economia política e à boa-fé dos patetas, uma injúria mais grave feita à Igreja em nome do progresso dos povos e do pão. No Chile, a campanha feminina das panelas vazias já anunciou o primeiro ato de uma ação devastadora que já não terá o humor negro da fome russa em 1926. Será uma fastidiosa reprise de amadores mal ensaiados.


***


E QUANDO penso na participação que têm tantos bispos nessa "batalha do pão" que terminará numa derrota de esfomeados, e quando penso na avalanche de publicações que todos os dias me enviam, postas todas em pauta do adultério católico-socialista, dá-me vontade de gritar aos degradados descendentes de Kropotkin: — Não só de blábláblá vive o homem!

***


OU ENTÃO, quando me demoro no exame da hediondez do conúbio católico socialista, que está a pedir um Edgard Poe ou uma Kafka para a descrição fantástica de um congraçamento festivo entre os médicos e os vírus, posto em adequada proporção. E logo me acode a frase de Gilson, a propósito do papel que Teilhard de Chardin representou no famoso Diálogo: "Só nos resta o ridículo da aventura".


SIM, leitor amigo. Hoje, "hoy", o católico tem, mais do que era qualquer século da história, a consciência do ridículo de ser católico sem ser santo. Na trama dos misteriosos consentimentos, Deus só nos deixa hoje a solução da santidade. Em todos as outras perspectivas, mais ou menos horizontais, "só nos resta o ridículo da aventura".


P.S. Um génio mau baixou sobre a máquina de quem piedosamente bate meus artigos, e três vezes insistiu em escrever "Octagesima Adviens" em vez de "Octogesima Adveniens". E aqui, como dizia Raul Fernandes do diplomata peruano, que tinha um nome sonoramente escabroso e duas vezes martelado, o que incomoda é a insistência.

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