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O Padre Vayssière O.P.: Eremita e Provincial

Foi um puro foco de vida espiritual que se extinguiu entre nós com o Padre Vayssière, “o santo Provincial de Toulouse”, como era muitas vezes chamado na Ordem de São domingos, onde o caráter exclusivamente sobrenatural de sua personalidade era bem conhecido. As recordações aqui narradas desejariam contribuir a prolongar o efeito dessa chama que o habitava e cujo vivo calor será insubstituível. Durante os seus últimos dias, ele não via mais, em sua longa vida, senão uma seqüência de tudo o que a Virgem Santa havia feito por ele: “Tudo tem sido misericórdia na minha vida, dizia, e misericórdia de Maria”. Ele resumia esta misericórdia em três raças essenciais das quais todas as outras tinham decorrido: graça do sofrimento, graça da solidão, graça da revelação da Virgem à sua alma. Que seja permitido aos seus filhos acrescentar a esta enumeração a graça que lhe foi dada para eles, a qual chamarei a sua graça de paternidade. Sigamos esta seqüência que nos oferece a interpretação sobrenatural de sua alma e de sua vida.

GRAÇA DO SOFRIMENTO

Para bem apreciá-la, é preciso compreender qual foi o arrebatamento dessa alma diante da bela e rica vida dominicana. Seminarista, era vivaz, ardente e impetuoso de caráter. Compreende-se facilmente, pois sempre permaneceu assim.

Havia nele uma chama. Essa chama notava-se já no Grande Seminário; o assunto habitual de sua conversação com o seu melhor amigo era a vida sacerdotal e os meios de torná-la mais perfeita. Leu um dia a vida de Lacordaire e, chegando a uma página qualquer, ouviu dentro de si um brusco apelo: “Serás dominicano”, que o determinou para sempre. Quis, portanto, tornar-se dominicano “para pregar”; nada era mais nítido no seu espírito, e foi Lacordaire que o levou após si.

Entrou com esse ardor no Noviciado de Toulouse, onde foi muito aplicado no trabalho de sua perfeição e plenamente feliz: “Estou contente demais’, dizia ele com receio ao seu Padre-Mestre, e contou muitas vezes quanta consolação encontrava ao repetir sem cessar as palavras do salmo, que aplicava ao seu estado de órfão: “Meu pai e minha mãe abandonaram-me, mas o Senhor levou-me para perto de si”.

Começou brilhantemente os seus estudos. Porém esse belo início de um sujeito de elite havia de tomar outro rumo. Um profundo esgotamento cerebral tornou-o de repente incapaz de qualquer trabalho intelectual. Nunca sarou completamente, e foi a cruz íntima de sua vida. “Ainda sofro disso”, confidenciava-me algum tempo antes da sua morte. Teve de fechar os seus livros e foi enviado a Saint-Maximin, onde terminou a sua preparação ao sacerdócio. O seu Padre-Mestre ali foi o Padre Colchen, religioso de grande raça, extremamente bom, mas apaixonadamente austero e pouco comunicativo. Ele que enfrentava todas as suas enfermidades para ir a matinas de noite, qualquer que fosse o seu esgotamento, julgava impossível que um tão bom religioso pudesse permanecer privado da graça de praticar as santas observâncias monásticas por falta de saúde. Ele o fez empreender um dia uma novena preparatória à festa de S”ao José, que devia consistir em levantar-se cada noite, custe o que custar. Pensava que um tal ato de fé faria um milagre. No oitavo dia da novena o pobre noviço não tinha nem a força para confessar-se. Diante desta resposta de São José, o Padre Colchen não insistiu. Seriam fechados para sempre ao Padre Vayssière tanto as observâncias como o estudo e a predicação. Assim mesmo, e embora os amasse com fidelidade, sempre insistiu dizendo que o essencial da via religiosa e dominicana não estava ali. Mas, acrescentava, o que é de fato a sua condição essencial é a abnegação, e nisto concordava profundamente com o Padre Colchen, pelo qual sempre conservou imensa afeição.

Foi nesse estado de dolorosa deficiência que foi ordenado padre. Começou então em sua vida o reino cotidiano da Missa. Guarda-se gravado em si mesmo, como um belo retrato, o rosto que tinha ao oferecer o cálice no Ofertório, esse rosto erguido com a hóstia, onde se lia uma tal expressão de oblação e de fé. Era o momento onde havia nele a maior suavidade, pureza e serenidade. No momento da comunhão esse rosto parecia verdadeiramente inflamar-se. Ele dizia: “O sacerdote deve permanecer durante todo o dia o que era no altar, deve viver a sua missa, ser imolado e dado, e dando-se doar Jesus.” 

Mas estou aqui falando já dos seus últimos anos. Uma vez sacerdote, após colaborar algum tempo como Sub-Mestre com o Padre Colchen, foi enviado ao convento de Biarritz, onde não pôde fazer nada. “Certo dia, contava ele, eu estava na sala comum ocupado a ler jornais e também conversando com este ou aquele Padre. O Padre Provincial veio a passar e repreendeu-me vivamente… Porém que queriam que eu fizesse? Não podia nem ler, nem confessar, nem nada: eu me aborrecia.”

Esse estado de deficiência física, o Padre Vayssière chegava às vezes a considerá-lo como a maior graça de sua vida. Por que? – Porque aprendeu assim experimentalmente a necessidade de aniquilar-se para que Deus reine. Foi o fato de não poder por si mesmo fazer nada do que teria desejado que o reduziu a somente apoiar-se sobre a ação de Deus. Foi sem dúvida pouco a pouco que apareceu essa luz desprendendo-se da sua provação. Mas no fim da sua vida a virtude de abandono amadurecera nele. Ou melho9r: o estado de abandono. Ele não vivia mais senão entre as mãos de Deus e da Santíssima virgem. Todos sabemos como ele se aplicava a nunca empregar nenhuma palavra que pudesse parecer colocar em nós o princípio do nosso esforço. Não dizia: amem Deus, mas: deixem-se ser amados. “O deixar fazer, é voar como pássaro rumo à santidade”.

O que, mais do que tudo talvez, fez do seu estado de deficiência uma graça foi a humildade que dele hauriu. Não é fácil falar da humildade dos santos. “Na história da minha alma, diz Santa Tereza de Lisieux, há páginas que somente no Céu serão lidas”. Efetivamente, para falar bem a respeito, precisaria mostrar as misérias que Deus deixa neles, essas faltas “que não magoam o Bom Deus”, mas que os humanos estranham. Ora, os homens não conhecem o lado interior e escondido dessas diformidades, não enxergam a humildade decorrente dessa humilhação. Na alma do Padre Vayssière esta humildade era maravilhosa. Ele mesmo considerava-se apenas para admirar a graça de Deus nas mínimas coisas de sua vida. Creio que a experiência, e sobretudo a aceitação cotidiana das suas deficiências foi a grande mestra de sua humildade. Sendo Provincial, dizia: “Colocaram-me aqui, aceito-o. É para mim humilhação contínua… Porém estou feliz de fazer a vontade do Bom Deus, que abençôo por manter-me na minha pequenez”.

A GRAÇA DA SOLIDÃO

Ele também a chamava a graça de sua vocação madalenense. Por si mesmo certamente não teria escolhido esse destino. Quando em 1901 os seus superiores, pensando provavelmente que ele era bom apenas para rezar, e que por outro lado podiam pedir-lhe tudo, o nomearam capelão da gruta de Santa-Maria-Madalena, na Sainte-Baume, esse jovem religioso e trinta e sete anos estremeceu. Muito mais teria estremecido se soubesse que iria permanecer ali trinta e um anos. Deus tirara-lhe o estudo, as observâncias, o apostolado da palavra. Completava agora o despojamento tirando-lhe a vida em comum e a sociedade normal dos homens. A Sainte-Baume é um lugar magnífico, um verdadeiro sítio de contemplação. Não há um dominicano da Província de Toulouse que ali não tenha vivido momentos inesquecíveis e serenidade e de plenitude, no sentimento tão benfazejo do acordo entre a voz das coisas e a oração da alma. Não se poderia descrever essa vasta e pura solidão cuja alma é ainda mais impressionante do que as formas depuradas. Porém retirar-se para viver ali vem a ser uma temível provação. Os dias de inverno podem ser sinistros, a floresta nas chuvas de outono é triste e fria de fazer chorar. O planalto do “Plan d’Aups”, quando sopra o mistral, é um verdadeiro deserto áspero e desnudado. E que isolamento em cima da alta e longa crista varrida por um vento furioso! O silêncio das coisas acaba parecendo com a morte. O problema par quem por obediência tornava-se eremita era aceitar essa solidão, desposá-la, esgotar sua graça. Foi o que ele fez e eis porque tornou-se um contemplativo.

Ele contou a muitos de nós como se decidiu a sua vocação. Ia se acostumando a descer todo dia até a hospedaria dos peregrinos, onde podia achar um ouço de companhia, de conversação e de jornais. Certa vez, encontrando-se numa bifurcação, teve a intuição de que não devia continuar a descer. Uma luz súbita mostrou-lhe a nulidade daquilo que ia procurar: “Que vais fazer? Distrair-te… Pois bem, não irás!” – Foi nítido como o “Serás dominicano” da sua juventude. Desta vez queria dizer: “Viverás do espírito da gruta, será um contemplativo”. Tomou o outro caminho, o da sua nova vocação. Desde aquele dia, acrescentava, nunca me aborreci”. Teve até, durante cerca de um mês, consolações abundantes: a solidão o festejava. Depois recaiu no seu estado habitual, “seca entrecortada de raios”, segundo a sua expressão. Mas permaneceu fiel.

Durante muito tempo nenhum jornal penetrou na casinha junto à gruta, onde morava com o seu fiel companheiro, o Irmão Henri, que redisse o charme de sua vida em comum. Não teve outras relações exteriores que aquelas impostas pelo seu ministério, em particular com as Irmãs de Béthanie, para as quais foi um verdadeiro pai e um apoio constante, e até durante algum tempo o capelão titular. Mais tarde os peregrinos tornando-se mais numerosos, ele não deu conta de acolher todos durante a bela estação. A casa de retiros de Nazareth, por ele fundada em 1932. Mas toda a sua ação irradiava da sua solidão. A solidão tinha penetrado tão fundo na sua alma que o formou para sempre. Mesmo diminuindo pouco a pouco em volta dele, a graça dessa solidão não pôde deixá-lo. Lá tornou-se esse homem de oração e de contemplação contínua que temos conhecido. Também aqui, estou contando a história de uma árvore que somente se deu a conhecer na plena maturação de seus frutos, mas foi na gruta de Santa Maria Madalena que criou raízes. Todo o mundo se recorda da atitude que ele tinha conservado, após tornar-se Provincial, nos conventos onde voltara a habitar. Reto, grave e pacificado, sempre parecia consciente de levar Deus. Ao envelhecer tornara-se como que diáfano. Ele tão risonho, de fisionomia tão expressiva, tão móbil, não entrava no coro ou mesmo nos lugares regulares, sem o mesmo rosto que tinha no altar. Permanecia ajoelhado durante toda a sua oração que fazia imóvel e de olhos fechados.

Confidenciou certo dia a um dos seus filhos o seu método de oração: “Começo renunciando a tudo o que poderia sair de mim. A seguir coloco-me inteiramente nas mãos da Virgem Santa e fico lá”. Parece que recebeu nos seus últimos dias a de vida uma luz muito nova sobre a oração de silêncio e de passividade. Tinha-se a impressão de que esta luz o libertava, mostrava-lhe a verdadeira maneira de orar pela qual toda a sua alma ansiava havia muito tempo. A quantas almas tentou comunicar essa luz! Eis o que disse um dia a uma delas: “é preciso serem contemplativos… É preciso silêncio… mas o silêncio interior, o silêncio das potências.. É preciso ir a Deus na fé pura. Antes de tudo é preciso retirar-se de si mesmo para ser atraído por Deus… Deus não é nada daquilo que é, nem está em parte alguma… É preciso ir a ele… “Sto ad ostium et pulso”… Às vezes é duro… É preciso abrir uma passagem através de si mesmo e através das criaturas. Mas notei isto: quanto mais seca a oração, tanto mais luz há durante o dia. Quanto mais há aniquilação, tanto mais atividade divina durante o dia… Quando não percebem nada dentro de si, creiam nesta palavra de Nosso Senhor: “Meu Pai e eu agimos sem cessar”… e então, nesse vazio, em frente de Deus, que faz Deus?

“Deus amou tanto o mundo que lhe dá o seu Filho único”. “É o dom supremo, o dom de Deus ao homem… Há uma objeção: e a humanidade do Cristo? Mas ela não é esquecida:: passa-se por ela. Somos tomados, somos possuídos pelo Cristo. Esta união com o Pai é o cume da alma do Cristo. Somos possuídos, somos envolvidos pelo Cristo… Isto supõe um despojamento… Porém uma tal oração não é apenas um termo. É um crisol. Ela mesma despoja a alma. “Sto ad ostium et pulso’. É preciso ir a essa porta, e bater… E nós dominicanos, devemos ser contemplativos por estado, para conhecer Deus, para conhecer as almas, a nulidade de tudo e o tudo de Deus… Essas coisas não são conhecidas, não são ditas. E agora que começo a saber… vou morrer”. Ele dizia essas coisas com um rosto iluminado, um rosto de testemunha. E que energia!

Esta oração de fé não era senão a concentração forçosamente momentânea de todo o seu ser, no que fazia os sentimentos habituais de seus dias. “O meu justo vive da fé”, repetia sem cessar, “vive do espírito de fé, não de modo esporádico, em certos momentos, mas em permanência… A pessoa tem fé, mas não se serve dela, julga com o seu juízo humano, e quer com uma vontade natural. “Mas crer em que? – Crer em Deus, em Deus que é amor. “O fundo do Ser de Deus é o amor. Sois amados por Deus. O seu amor é um Oceano sem orlas… é um amor eterno! O seu amor submerge-nos, abraça-nos Eis a verdade na qual devemos crer… Crer no amor de Deus em todas as coisas, como engrandece tudo!… Somos continuamente na pulsação perpétua do seu coração… Entreguem-se ao amor, eis o seu abrigo. Lá permaneçam em cada vontade que passa… Lá não há nada a temer e tudo a esperar! Não é sempre fácil… Pois Deus é um fogo devorante que consome em nós tudo o que não é de Deus. Entreguem-se ao Amor puro por puro amor, e santificar-se-ão.”

Ele não queria que a pessoa se contentasse de crer pelo espírito, queri a sua adesão pelo coração, a sua comunhão com essa Vontade de Deus, com esse “amor que nos sitia portoda a parte” e que é a última palavra de tudo o que faz gozar ou sofrer. Queria que se fizesse apenas isto: o retraimento de todo si mesmo diante do ser e da ação de Deus, abandonar-se, sabendo que isto quer dizer: deixar-se ser amado; – mas também “abraçar Deus a todo instante fazendo a sua vontade, já que a vontade de Deus é Deus”.

Certa noite na Sainte-Baume estávamos fora de casa. “A vontade de Deus, meu filho, não procure outra coisa… É como para a minha reeleição. Tudo parecia humanamente contrário. Assim estou bem tranqüilo… “Adjutoriumnostrum in nomine Domini”… e depois, com um gesto largo e de grande força, que me mostrava todo o céu e todos os horizontes da Saint-Baume: “qui fecit coelum et terram”. Apoiamo-nos sobre o Todo-Poderoso que fez o céu e a terra”.

Mas por que insistir, era a sua predicação constante, o espírito mesmo da sua vida que nos transmitia dizendo isso: “Digo a mesma coisa a todo o mundo, concluía ele com a sua simplicidade inimitável, não sei mais nada do que isso. E agrada a todos. Todo o mundo fica contente”. Sobretudo ele mesmo vivia isto, que tinha aprendido no livro do seu coração. Essa comunhão com o amor de Deus através de tudo o que fazia ou sofria, era a sua contemplação perpétua, “unida à ação, dizia ele, como a alma ao corpo”. Tinha chegado ao estado que assim definia: “Na alma religiosa, o passado e o porvir não contam. Somente conta o momento presente, onde ela está em comunhão com o infinito de Deus.”

A GRAÇA DA INTIMIDADE MARIAL

Mas tenho pressa de mostrar o espaço reservado à Virgem Santa em tudo o que acaba de ser dito. Ela era o instrumento universal, a própria atmosfera de sua vida espiritual. Era ela que o estabelecia e mantinha nesse estado de despojamento e de pura união apenas com Deus, e que assim quisera. “É a Santíssima virgem que fez tudo. Devo-lhe tudo, tudo”, dizia ele freqüentemente. Ela tinha sido a mãe exigida pelo sentimento de sua pequenez, a doçura suprema na sua mais profunda renúncia, a fecundidade de sua solidão e inspiradora de sua oração. Ele não tomava consciência de nenhuma graça de Deus sem ao mesmo tempo ser consciente da via pela qual lhe chegava. “Tudo é graça”; portanto, pensava ele, a Virgem Santa é intimamente presente em tudo.

Nem todos os santos se colocam assim no Coração da Virgem Santa como no centro de sua vida espiritual. Para consegui-lo é preciso uma luz, uma revelação da Virgem Santa, que supõe da sua parte uma escolha. O Padre Vayssière a teve em grau excepcional. É próprio da alma marial, esse instinto de encontrar Deus em Maria, de até alegrar-se particularmente nesse conhecimento, de assim render-lhe glória, oferecendo-se não somente pelas suas mãos, mas antes de tudo a ela, certo de que tudo o que é dela é de Deus, que há uma total e perfeita renúncia a si mesma da mãe diante do Filho. Esse sentido da transparência de Maria explica a maneira do Padre Vayssière de falar a respeito. Tudo o que dissemos sobre a sua oração e sobre a sua vida de fé mostra suficientemente qual era o fruto de uma tal doação. Achei até muito profundo este seu pensamento…: “A Santíssima Virgem não tem mais a fé, porém ela a guarda para nós. Deve-se buscar a fé na sua fonte. Jesus Cristo não teve a fé. A fonte da fé é Maria”. – “Toda a vida espiritual está nisso, nessa doação ao amor Infinito. Mas não esqueçamos que ela se faz nos braços de Maria, na graça de seu ofício materno”… “Maria é como um grande rio que nos leva ao Cristo… Mas não se deve crer que Maria, Nosso Senhor, sejam apenas etapas para chegar ao Pai. Não é isso: Maria , o cristo, Deus, são um todo, inseparável!”

Ele sentia isto instintivamente, mas o justificava também por uma doutrina marial, que bastaria desenvolver para fazer uma bela obra. “A Virgem Santa não é senão mãe… e mãe somente de Jesus, é Ele que ela gera na alma… Toda a ação de Maria leva a Jesus… Não se poderia conceber nela uma parcela sequer da sua atividade que não tivesse Jesus como objeto e como fim. É a sua missão. Ela é mãe. O seu papel de mãe é de nos dar a vida divina em troca de tudo o que ela nos ajuda a sacrificar… O próprio Espírito Santo criou e preparou o Coração de Maria, no qual cavou profundidades inefáveis. Fez dele um coração de mãe, e não de qualquer mãe, mas da mãe de Deus… É com esse coração feito para um Deus, com essas ternuras reservadas a Deus, que Maria ama a humanidade, que Maria ama cada uma das nossas almas.”

Para ele o mistério de Maria era o da perpetuidade do mistério da encarnação redentora, com o qual cada alma humana pode verdadeiramente comungar. Assim como Jesus veio no mundo, assim vem viver em nós. “é a lei de Deus que desde a Encarnação renova-se através dos tempos e em todas as almas que querem ser fiéis e realizar o mesmo mistério de amor: Jesus.”

É na meditação desse papel vivificador de Maria que ele tirava a sua doutrina do contato a manter sempre, da dependência a tornar todos os dias mais estreita e mais total. “Quanto mais pertencemos a Maria e à sua ação, tanto mais estamos em vias de união com Deus, de reviver Jesus… Precisamos estabelecer-nos espiritualmente em Maria como uma criança no seio de sua mãe. Quanto mais somos unidos a ela, tanto mais ela nos vitaliza. É ela, é Maria que nos forma… O caminho de fidelidade filial a Maria é o verdadeiro caminho, podem crer, é reviver a própria vida de Jesus em Nazareth.” E se alguém tivesse achado nessas considerações algo metafísico demais, ele concluía com toda simplicidade, com extraordinária e límpida ternura: “A Virgem Santa é uma (ma)mãe. Ela nos ama como um (ma)mãe. Devemos amá-la como uma (ma)mãe.” Porém o Padre Vayssière não tivera a felicidade do convívio com a sua mãe, falecida jovem. Não tinha aprendido da natureza esses sentimentos que depois é tão bom e tão belo transpor na ordem da graça e das coisas espirituais. Não tivera outra mãe a não ser a própria Virgem santa, e dela tinha aprendido tudo, até mesmas delicadezas mais humanas do seu coração. Certo dia estávamos juntos num bonde. Perto de nós estava sentada uma jovem mãe com uma criança nos braços. Após ter observado um momento, o Padre tocou-me o braço, dizendo: “Veja… Isso faz pensar no Bom Deus… Eis o que somos entre os seus braços. É curioso, quando jovem não prestava nenhuma atenção às crianças… Porém agora, isto enternece-me.”

Compreende-se como a humildade do Padre tornava fácil uma tal dependência: “é preciso tornar-se criança, tornar-se pequenino.” Compreendi perto dele que a verdadeira devoção à Santíssima Virgem era inacessível aos orgulhosos. Todas as suas palavras a respeito da Virgem Santa saíam de um coração simples e despojado.

Ele era consciente disto. Quanto mais tornamo-nos pequenos, dizia, tanto mais lhe permitimos ser mãe. A criança pertence mais à sua mãe na medida em que é mais fraca e pequenina… a perfeição da via de infância no plano divino, é a vida em Maria.

Esta graça da intimidade marial, ele a devia primeiramente ao estado de pequenez ao qual havia sido reduzido e tinha consentido. Ma a devia também ao seu Rosário. Durante os longos dias de solidão da Saite-Baume acostumara-se a rezar diariamente vários rosários, às vezes até seis. Muitas vezes os dizia inteiramente ajoelhado. Não era uma recitação maquinal e superficial: toda a sua alma nele passava, ele o saboreava, o devorava, era convencido que encontrava lá tudo o que se pode procurar na oração. “Recitem cada dezena, dizia, menos refletindo do que comungando pelo coração com a graça do mistério, com o espírito de Jesus e de Maria tal como esse mistério o apresenta… O Rosário é a comunhão da noite (outras vezes: é a comunhão ao longo de todo o dia) e que traduz em luz e em fecunda resolução a comunhão da manhã. Não é apenas uma série de Ave Maria”. Assim vivia ele, nesse ciclo incessavelmente em ação do seu Rosário, como que “envolto” pelo Cristo, por Maria, segundo a sua expressão, em comunhão com cada um dos seus estados, com cada aspecto de sua graça, assim penetrando e permanecendo nos abismos do Coração de Deus: “O Rosário é uma corrente de amor de Maria à Trindade”. Compreende-se qual contemplação (esta oração) tornara-se para ele, que caminho para a união pura a Deus, que necessidade, semelhante à da comunhão. E quem o via constantemente manusear as contas do seu rosário podia pensar que cada uma delas tornara-se para ele como que um sinal sensível e quase falado, um memorial de todos os seus pensamentos, de toda a contemplação acumulada ao longo de tantos anos.

A GRAÇA DA PATERNIDADE

Afastado durante muito tempo da vida dominical normal, condenado mesmo, durante as expulsões, a vestir a batina (porém à noite somente se deitava no seu hábito branco), privado da difusão irradiante e longínqua própria ao apostolado dominicano, sempre ouvia no seu coração a voz da sua juventude: “Serás dominicano”. Eis como entendeu então o sentido de sua missão: representar a Ordem de São Domingos na gruta da penitência e da contemplação. Elevado acima de todas as realizações exteriores do seu ideal, carregou silenciosamente no seu coração a sua Ordem inteira; compreendeu a essência da vocação, compreendeu sobretudo que era uma vocação, no sentido forte da palavra, isto é, um chamado de Deus, a Vontade essencial de Deus sobre certas almas, sobre a sua. Compreendeu que essa Vontade de Deus traduzia-se numa Regra cujos mínimos detalhes tornavam-se por isso sagrados, mas que ela visava antes de tudo a realizar uma certa forma de santidade, uma certa maneira de imitar Nosso Senhor, um qualquer coisa de mais alto do que toda teoria, que havia sido realizado uma primeira vez em S”ao Domingos, e que era preciso tornar a viver em união com ele. Seria longo demais narrar e descrever o que foi nele essa graça de união filial com S”ao Domingos. Magnífico amadurecimento da graça de fidelidade à vocação. Ela tinha um sentido bastante profundo par indicar a todo religioso de que espécie deve ser a sua devoção para com o Pai da sua ordem. Ela o preparava, sem que disso pudesse ser consciente, a ser o representante de S”ao domingos entre nós. Sem dúvida somente o compreendeu, com a plenitude que nele temos conhecido, depois de nomeado Provincial.

Ele mesmo contou que celebrando a missa de 4 de agosto, pouco tempo depois de sua eleição, sentira-se interiormente impelido com força “par se dar a S”ao Domingos”. Esta graça dominou todo o seu Provincialato. Não contarei aqui tudo o que ocupou esses oito anos tão plenos e tão pesados. O nosso Reverendíssimo Padre Geral escreveu-nos que não tinha visto provincialato mais fecundo em realizações. O próprio Padre Vayssière constatava com reconforto que “apesar de tudo a Virgem Santa tinha feito muito quando ele estava lá”. Todo o mundo admirava os desígnios da Providência que o tirava da sua vida tranqüila de eremita, na idade em que outros se aposentam, para mergulhá-lo nas preocupações, nas viagens, nos embaraços de toda espécie. Mas ele aceitava tudo com simplicidade. Encontrara na sua solidão o segredo de abraçar Deus em todas as coisas ao fazer em tudo a sua vontade. Podia deixar a sua Gruta.

Pelo contrário, a sua graça não podia senão expandir-se, e precisava dessa missão para atingir sua forma plenária, tornando-se uma graça de paternidade. Mais do que nunca, as suas deficiências ser-lhe-iam um motivo de despojamento e de humildade; mais do que nunca iria a sua oração fazer-se pura e elevada, sua fé fortalecida no contato com as contingências que sempre vencia. Mais do que nunca sobretudo, tendo tanto a fazer e a pensar, iria refugiar-se entre as mãos da virgem santa. A sua graça marial cresceu e aprofundou-se até o fim: “A Virgem Santa é um agente essencial da vida espiritual, sobre tudo nos estados mais elevados”. Poucos dias apenas após sua primeira eleição, disse-me com expressão surpreendentemente decidida: “Já que sou Provincial, vou aproveitar para aperfeiçoar-me”.

Aqui aparece bem a sua resposta imediata à própria intenção da Vontade Divina, o seu dom de enxergar o essencial de uma situação e de exprimi-lo numa só palavra. Foi fiel ao seu propósito. O seu papel foi antes de tudo de ser uma fonte, um foco espiritual na Província, um pai. Graça de paternidade, comunicação ao seu coração do dom que teve o de Maria, de dar Deus dando-se. Ele nos amava todos “com um coração de pai e de mãe”. É verdade que às vezes era retraído, “selvagem”, como dizia, com aqueles que somente viam nele o superior. “Muitas vezes, dizia, quando um Padre vem conversar comigo, estou crucificado pela minha inabilidade, minha falta de meios. Não sei o que dizer-lhe. Sofro, ofereço o meu sofrimento ao Bom Deus por aquele que ai está”. Somente estava completamente à vontade quando podia livremente falar de Deus, quando podia movimentar-se no terreno puramente sobrenatural que nunca conseguiu deixar, mesmo ao deixar a Sainte-Baume. Alguém dizia-me: “Esse homem é o coração da sua Província. Toda a Província vivia nele”. Nada mais justo: ele se apaixonara por ela.

A GRAÇA DA MORTE

A saúde do Padre Vayssière havia sido fortemente abalada durante a guerra. Porém como estava sempre mais ou menos doente, surpreendeu-se inicialmente ao aprender que era grave e que devia submeter-se a uma operação cirúrgica perigosa. Aceitou imediatamente a situação e decidiu ir até o fim. “É o meu cargo e a minha vida, disse, que terminam na cruz. Houve tantas deficiências no exercício do meu cargo que era necessário sofrer um pouco pela Província para reparar. E agora, minha vida, meus sofrimentos, minhas preces, tudo é pela Província para reparar. E agora, minha vida, meus sofrimentos, minhas preces, tudo é pela Província.” O Rosário no pescoço, não cessava de manuseá-lo Havia na frente dele um armário com espelho que refletia a pequena estátua da Santíssima Virgem colocada na parede: “Assim, tenho-a sempre à minha frente”, gostava de confidenciar aos seus visitantes. Deixava-se tratar como uma criança. A sua alma vivia num sentimento muitas vezes transbordante de ação de graças. Aos 15 de agosto pediu a um Padre, como ele originário de Rocamadour, que celebrasse a missa numa intenção de ação de graças por todas as graças que tinha recebido de Maria na sua vida terrestre. Tendo sido presenteado com um terço de ouro, remeteu-o ao amado santuário de sua terra natal em testemunho de gratidão. Foi depois desta festa da Assunção que o vi pela última vez. Ele me disse: “Tive grandes graças nesta festa de 15 de agosto. Compreendi claramente que devia oferecer minha vida pela Província. Não sei se vou morrer, será como o bom Deus quiser. Mas a sua vontade é que ofereça a minha vida pela Província. E agora… estou esperando… estou tranqüilo… estou contente.” A uma outra pessoa, dizia: “E como agora que vou morrer, não posso pensar na morte. Penso que vou fazer a vontade de Deus ao morrer, como quando tomava o trem para Toulouse ou que partia da Gruta para ir à hospedaria. “ – “Meu filho, dizia ele ainda, como suprema confidência de sua experiência e de sua sabedoria, o que falta ao religioso é a abnegação. Rebusca-se a si próprio nisto ou naquilo, eis porque não se une a Deus.” E continuava: “Sim, mesmo aqueles que têm virtude e mérito não renunciam a si mesmo. Assim a sua vida espiritual arrasta-se”.

Ele previu o dia da sua morte: “Perdi o dia 8 de setembro e o 15 de agosto; não perderei o 15 de setembro.” De fato, não o perdeu. No dia 14 de setembro, por volta das quinze horas, teve uma crise súbita que o levou em poucos instantes. Era a hora das primeiras Vésperas de Nossa Senhora das Dores. Oito anos antes, no mesmo dia e quase na mesma hora, assinava a sua aceitação do cargo de Provincial. Ele chegava exatamente ao seu termo, bebera a última gota do cálice, tudo era consumado. Na mesma manhã escrevera em sua agenda esta frase de Santa Teresa do menino Jesus: “Minha glória será um reflexo na minha fronte da glória de minha mãe.”

Foi transportado para o pequeno cemitério da Sainte Baume, ao pé da Gruta. Tivera, quem acreditaria, a tentação de pedir outro lugar de retiro e de sepultura. Porém pouco tempo antes de sua doença, andando na grande floresta que fora a confidente do seu isolamento, de seus despojamentos e de suas graças, ouviu em si mesmo uma voz o repreendendo: És um ingrato.” Que o seu humilde túmulo permaneça nesse lugar santo como testemunho de sua gratidão por tudo o que a sua alma ali recebeu com simplicidade e fidelidade.

Ir. Marie Joseph Nicolas, O.P.

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