Por Gustavo Corção
publicado n’O Globo em 09-08-1973
É A ÚLTIMA espetacular novidade religiosa que se espalha com grande sucesso no mundo inteiro. Num recorte recente de Le Monde lemos a notícia desse movimento cujo sucesso se contrapõe, na pena de Henri Fesquet, "ao declínio das grandes Igrejas" mais ou menos institucionalizadas. Esse movimento de origem protestante, nascido antes do século, cresceu agora rapidamente. O número de "Assembleias de Deus" que era 264 em 1963 ultrapassa o número de 400 em 1972. Calcula-se em dez milhões o número de praticantes no mundo inteiro, diz Le Monde; e como era de esperar anuncia que o movimento já entusiasmou o mundo católico onde ganha a denominação de "renovação carismática" e até reclama o mais ousado título de "novo pentecostes".
EM JUNHO p.p. reuniu-se na Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos, um "congresso de renovação carismática" com o comparecimento de 25000 participantes, entre os quais figuravam muitos padres, bispos, e o Cardeal Suenens, Primaz da Bélgica.
QUE DIZEM de si mesmos esses católicos empenhados em tal movimento? Várias publicações, entre as quais destaco a do jovem casal americano Kevin e Dorothy Ranaghan, num livro traduzido em francês com o título Le Retour de l'Esprit, apresentam o movimento pura e simplesmente como uma descontinuidade explosiva surgida na história do cristianismo e produzida, nem mais nem menos, por uma nova descida do Espírito Santo sobre os milhares de adeptos que recebem, por imposição das mãos de outros, o "batismo do Espírito" e subitamente se convertem, mudam de vida, passam da mais profunda depressão à mais jubilosa exaltação, e começam a "falar em línguas", como os cristãos da Igreja nascente, e como os apóstolos no dia de Pentecostes (Atos, II, 1).
UMA DAS características do estado de espírito produzido nas assembléias carismáticas é a predominância da exteriorização sobre a interiorização, e a marcada emotividade que leva os adeptos a sentirem a presença do Espírito Santo, e a declararem essa convicção com uma espontaneidade — cada um contando sua experiência própria — que se liberta de qualquer compromisso de submissão à aprovação da Igreja.
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ATÉ AQUI nosso espanto foi excessivo porque este fim de século e o mundo católico dito progressista já nos saturaram de extravagâncias, e já nos embotaram a manifestação do espanto. Nossa preocupação começou a ganhar dimensões de alarma quando vimos que o prudente hebdomadário L'Homme Nouveau, dirigido por Marcel Clement, enviou 7 representantes ao Congresso de "renovação carismática" na Universidade Notre Dame, e que o próprio Marcel Clement, no seu editorial de 1.° de julho p.p., não hesita em falar de "novo Pentecostes" e de fazer este estranho pronunciamento:
"É UMA realidade de Igreja. Equilibrada, serena, poderosa. Não se trata de um misticismo exaltado. É verdadeiramente o Espírito Santo que os invade e os faz caminhar muito depressa até a única e verdadeira Igreja de Jesus Cristo."
A NÓS nos parece que depressa demais pronunciou-se o Professor Marcel Clement, como também nos parece incompreensível que se diga "cheminent très vite jusqu'à la seule et veritable Eglise de Jesus Christ" de pessoas já nela inseridas pelos sacramentos.
PREVEMOS o caminho de uma luta mais difícil do que as outras que até agora tivemos de enfrentar porque todos terão pressa excessiva de marcar pontos positivos num movimento em que os rapazes e as moças só dizem que querem rezar em "comunidade carismática", porque receberam do próprio Espírito Santo, num novo Pentecostes, dons maravilhosos que os tiraram dos mais profundos abismos e os elevam à mais pura alegria. Quem quererá cobrir-se do negrume de todas as antipatias para enfrentar tão maravilhosa transformação do mundo com um mínimo de reserva ou de exigência?
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PARA encaminhar adequadamente a questão, amigo leitor, começo por lhe lembrar alguns títulos que nos dão direitos a certas exigências. Somos um povo que há dois mil anos segue a pista de um Deus flagelado; pertencemos à forte raça daqueles mártires que deram o sangue para testemunhar a verdadeira religião e para resistir a todas as fraudes; descendemos também daqueles outros que silenciaram nos mosteiros seus próprios sentimentos e suas próprias emoções para deixar que só o Espírito de Deus falasse por eles. Pertencemos a um Povo ainda mais antigo que ouviu do próprio Deus o trovão de uma identidade absoluta: "Eu sou aquele que sou, e o preceito da mais inquebrantável intolerância: não terás outro deus diante de minha face."
TUDO isto, amigo leitor, nos inclina a uma profunda aversão por tudo que pareça equívoco, e que, em matéria de religião, mais manifeste as turbulências da pobre alma humana torturada por um mundo ensandecido do que as grandezas de Deus manifestadas pelos Apóstolos no dia do único e verdadeiro Pentecostes.
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EM OUTRO artigo tentarei expor as razões que me levam a ver nesse movimento uma nova feição da revolução que quer por vários processos destruir a Igreja.
HOJE trago apenas os títulos que me dão o direito de exprimir tais reservas, e que me lembram o dever de as exprimir. Pecador e inútil servidor, pertenço, todavia, àquela raça exigente. Sou homem de Igreja que só quer nela viver e nela morrer.