Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 29-5-75
ESCREVO estas linhas para a festa do Corpo de Deus. Anos atrás, em Belo Horizonte, fui convidado pelos moços da JUC a pronunciar uma série de conferências que culminavam em meditações sobre o Sacramento do Altar. Hoje volto ao assunto num ambiente sombrio em que o alvo do orgulho e da malícia dos que se afastaram de Jesus é precisamente o Pão da Vida.
TRACEMOS uma linha de união entre o que aconteceu em nossos dias em torno da Santa Missa, e o que in illo tempore se observou entre os discípulos que cercavam e ouviam Jesus quando ele lhes propôs o espantoso mistério do pão e da vida:
“EU SOU o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto, e morreram. Este é o pão descido do céu, a fim de que não pereça quem d’ele comer. Eu sou o pão vivo descido do céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente. E o pão, que eu darei, é a minha carne para a vida do mundo.”
“OUVINDO isto os judeus discutiam (…) Jesus lhes diz: em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem, e não beberdes o sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. A minha carne é verdadeiro alimento, e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele. Assim como o Pai que é vivo me enviou e eu vivo pelo Pai, quem me come também viverá por mim. Este é o pão que desceu do céu. Não é como aquele maná que vossos pais comeram, e morreram. Quem come este pão viverá eternamente.”
“ESSAS coisas ele disse ensinando em Cafarnaum. Por isso muitos de seus discípulos ao ouvi-lo disseram: — É dura esta lição e quem poderá aceitá-la (…). Daí por diante muitos de seus discípulos afastaram-se e deixaram de segui-lo.”
DISSE então Jesus aos 12: — Porventura quereis vós também me deixar? Respondeu-lhe Simão Pedro: — Senhor, a quem iremos? Só vós tendes palavras de vida eterna.”
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ESTA longa, mas necessária transcrição nos coloca diante de um dos muitos desconcertantes paradoxos do ensinamento de Jesus, que não parece muito empenhado em agradar seus seguidores já então numerosos. O Pe. M-J Lagrange (L’Evangile Selon Saint Jean p. 187) diz assim: “Jesus, por ciência divina, sabe que eles não o querem seguir até este ponto”, e então o anúncio do Pão da Vida é posto em forma ao mesmo tempo insistente e provocante, diante do qual a maioria dos ouvintes se afastou murmurando o descontentamento: “palavras duras”, como quem se queixasse: “assim também é demais”. E então Jesus experimenta os 12, obtendo de Pedro uma declaração que de certo modo é evasiva quanto ao mérito da questão, mas decisiva quanto à confiança posta em Jesus, que continuarão a seguir, pois só ele tem palavras de vida eterna.
PARA NÓS que estamos diante da obra completa de Jesus, é fácil o nexo entre este texto e aquele outro em que, pela primeira vez, Jesus não apenas anuncia e ensina, mas já efetua na Ceia o sacrifício ainda incruento e sacramental. (Mat. XXVI, 26). Logo depois se consumia na Cruz a obra da salvação, e a partir deste supremo arremate os apóstolos que Cristo envia ao mundo poderão fazer, e não apenas lembrar, a re-apresentação do Pão e do Vinho que constituem o centro da vida cristã, e o ponto de encontro onde Jesus cumpre a promessa que nos fez de estar todos os dias conosco até a consumação dos séculos.
ANOS ATRÁS nós diríamos estas mesmas coisas, isto é, repetiríamos que a Santa Missa, e o centro de gravidade dela que é a consagração do Pão e do Vinho, consubstanciados em Corpo e Sangue de Cristo, marca o compasso quotidiano de nosso caminhar na seqüência de nosso Salvador; e nesses anos atrás — como me lembro com feliz lembrança de minhas conferências em Belo Horizonte nos anos cinqüenta — essas coisas eram ditas num ambiente de tranqüilidade e alegria.
HOJE TEMOS a mesma inabalável confiança nas palavras de Jesus, confiança por ele mesmo alimentadas, mas sabemos que do lado dos homens que seguiam Jesus é a “presença real” no sacramento da eucaristia que tem afastado muitos discípulos. Uns se afastaram com a brutal franqueza dos antigos, mas os mais pérfidos e nocivos são os que se afastaram pela adulteração do mistério, que assim fica menos duro.
NA VERDADE, é preciso ter consciência da real dureza desse profundo mistério. Todos os mistérios de Deus ultrapassam nossas forças naturais, mas o estilo inventado para nossa salvação pela imolação do Cordeiro de Deus, e pelo prolongamento da Encarnação na Eucaristia, é realmente um forte desafio lançado às forças naturais do homem. Porque esse grande mistério — é mister reconhecê-lo — está muito condicionado de nossa parte. De início diria que está condicionado (não digo “causado”) por uma reta filosofia capaz de distinguir a substância do acidente. Não digo que a verdade da “presença real”, em si, esteja na dependência de uma filosofia, digo porém, sem hesitação, que ex parte nostra o proveito e o progresso espiritual alimentado pelo Pão da Vida estão condicionados a um reto pensar que só se encontra numa reta filosofia, seja ela professada no nível da especulação consciente e formulada, seja ela vivida no nível do senso comum. As filosofias derivadas da explosão atômica do nominalismo, que, como disse o historiador Fraile, “no fim do século XIV se ensinava, em todas as universidades da Europa”, todas as filosofias derivadas da ruptura entre a inteligência e o ser, que poluem o ar deste fim de uma civilização, tornam impraticável o cristianismo e são especialmente envenenadoras do mistério da Encarnação, e desta outra jóia de Deus que está no centro do drama da Salvação.
AS MODERNAS reformas conspiram todas contra essa jóia que a Igreja agasalhava, resguardava e protegia: com a reta filosofia, com os sinais de respeito infinito, com as delicadezas e pudores servidos pelos anjos. A brutalidade do reformismo atual abriu precedentes a todas as aberrações, ao contrário desse agasalho de amor, e pensa que é muito pastoral tratar o Corpo de Deus com mais vulgaridade, com a mais desembaraçada falta de respeito, para quebrar o tabu do mistério: a fim de quebrar a fé na Presença Real. Este é o sonho de Satã, e o ideal dos imbecis. Para terminar o que continuaremos em outros artigos não hesito em dizer que a “nova missa” nasceu no quadrante dessa intenção vulgarizada, e portanto, na intenção dos discípulos que se afastaram, e cada dia mais se afastam de Jesus.