Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 29–09–1973
LEMBRA-ME aqui o estupor do meu caro amigo Gladstone Chaves de Melo quando leu nos jornais um pronunciamento qualquer de oitenta teólogos de uma cidade norte-americana: — "O que me espanta" — disse-me ele — "não é o teor do pronunciamento, é simplesmente o fato de nessa cidade existirem oitenta teólogos". E tem toda razão o professor Gladstone Chaves de Melo, porque realmente nunca houve no mundo tantos teólogos como hoje; mas também nunca houve tão pouca teologia.
NÃO pretendo, nestas modestas colunas, inculcar ao leitor um curso de teologia, mas talvez pudesse dizer-lhe algumas palavras que o capacitem a distinguir facilmente a existência ou não existência de algum pensamento teológico em textos assinados por oitenta ou mais teólogos; oitocentos ou mais bispos. Para começar direi que teologia é, para nós católicos, uma ciência e uma sabedoria, que tem por objeto o DADO REVELADO visto na FÉ, trabalhado com a luz da razão para uma conexão que fez da Revelação um todo orgânico, palpitante de vida, e acessível a essa obra conjunta da luz da Fé e da razão. O texto que não tiver essa estrutura fundamental onde prevalecem de um lado a Revelação e de outro a luz da Fé, não é teologia. Mas não basta encontrar aqui e ali citações das Sagradas Escrituras, não basta falar em evangelização, não basta falar em Fé com maiúscula ou minúscula para que o texto seja católico ou teológico. Muitos e muitos dos documentos modernos, a despeito desses ornatos, são colocados na perspectiva das ciências humanas naturais, e quase sempre mal colocados. Na maior parte dos casos trata-se de má sociologia disfarçada em teologia. Dou ao leitor alguns recursos fáceis para poupar trabalho. Se o texto insiste demasiado nos tempos modernos, ou refere-se com demasiada insistência a alguma parte geográfica do planeta — por exemplo: América Latina — é melhor afastá-lo e ligar a TV.
DOU ainda outro critério que serve para uma prévia aquilatação do texto inculcado como teologia. A teologia, como dissemos, é a ciência da revelação. Poderá ter todos os objetos materiais do mundo desde que se subordinem a esse objeto formal. Todos os problemas humanos podem ser focalizados pelo teólogo desde que o veja na luz da Fé e no contexto da Revelação, e desde que o interesse desse problema transcenda o plano de seu objeto material e seja elevado à ordem da economia da Salvação e da vida eterna. Quando se percebe que o texto põe seu capital interesse num problema temporal, ainda que cite quarenta vezes a Gaudium et Spes ou outro documento eclesiástico, podemos ter a tranquila certeza de que se trata de teologia desidratada, ou em pó. Ou falsificada.
TRAGO ainda um terceiro critério pelo qual o leitor logo perceberá o embuste que quer passar por católico. É o seguinte: o estudo teológico seriamente católico tem uma marca que não basta para qualificá-lo, mas cuja ausência basta para desqualificá-lo. É a sua inserção na doutrina secularmente ensinada pela Igreja. A obra, como a de Teilhard de Chardin, que não se apoia em um só doutor da Igreja, que não se nutre em um Santo Agostinho, não se desenvolve em Santo Tomás, não cita um outro teólogo desta ou daquela ordem religiosa, que desconhece a patrística e a escolástica, que em suma nos surge sem linhagem, se pretende ser pensamento católico, comete a horrível impiedade de se mover na mais completa e desembaraçada preterição de todas as intenções da Igreja — e basta essa impiedade para desqualificá-la como obra católica.
E AQUI cabe uma advertência: também não basta citar o Concílio Vaticano II para inserir uma obra no grande contexto do Magistério, e da obra dos santos doutores, porque esse recurso, frequentemente usado pelos 80 ou 800 "teólogos" modernos, pretende fazer dos textos conciliares uma suma que atualiza, condensa e dispensa o menor relance para alguma questão de Santo Tomás. Essa falsa reverência ao Concílio é outro aspecto da mesma impiedade que consiste em querer ser católico sem nenhuma atenção para o imenso e admirável contexto católico que integra a sabedoria da Igreja.
TENHO diante de mim um livro dito de teologia: além de duas ou três referências ao Concílio não cita uns só dos santos doutores da Igreja. O autor pensa sozinho. E quando alguma dúvida o leva a vacilar procura apoio num autor protestante, preferivelmente alemão.
DIRÁ o leitor que meus critérios são superficiais. Não o nego. Mas servem para um primeiro teste, e em 99 casos em 100, servem como autêntico exame vestibular e eliminatório. Vários Papas e até Concílios da Igreja aconselharam enfaticamente o estudo de Santo Tomás que se tornou assim o Doutor Comum, o atingimento máximo da teologia especulativa, que poderá ser desenvolvido, dilatado, mas jamais rejeitado sem ruptura da Igreja em sua dimensão histórica que é inseparável de sua dimensão de eternidade. Não é, portanto, concebível um pensamento católico que imagine sequer a possibilidade de começar no Concilio Vaticano II, ou até no falso concílio de Mendelin. Tal pretensão é mais ímpia que a do mais desvairado protestantismo, porque nem sequer discute ou recusa o pensamento da Igreja: ignora-o ou o despreza.