Por Gustavo Corção publicado n’O Globo em 17-01-1974
ONTEM, para descansar do hoje opressivo e tirânico que se nos impõe com brutalidade para vingar-se de sua fugacidade, fui remexer papéis velhos, e lá me encontrei num antiquíssimo 1968 em situações de nostalgias e doçuras perdidas. Não resisti ao desejo de revivê-las na companhia do leitor de hoje. Se esse fiel leitor acaso ainda se lembra dessas páginas antigas, gostará talvez de relembrá-las; se não se lembra, gostará talvez de recordá-las.
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LOGO às primeiras linhas recebo a deslumbrante visita de um Fernando Carneiro ressuscitado e acompanhado de um moço discreto e modesto que já me fora apresentado como um sábio matemático. Na semana passada eu recebera um boletim mimeografado do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, organizado pelos professores Nachbin, Lindolfo de Carvalho Dias e Luís Adauto Medeiros. Pobre de mim! Corri os olhos pelas folhas do boletim e mal me encontrei, ou talvez seja melhor confessar, logo que me perdi. Minha matemática de engenheiro ficou para trás, mas assim mesmo senti uma saudade enorme de sua modéstia e de sua claridade.
SIM, o referido boletim despertou-me a nostalgia das demonstrações exatas e comunicáveis sem perigos de extravios ou contestações. Quem vive a mover-se e a lutar no mundo das ideias filosóficas e das verdades teológicas não consegue descansar as pernas, a garganta, o gesto, no tranquilo patamar de uma cabal demonstração, de onde se avista, ordenada e harmoniosa, a paisagem das ideias concatenadas e das conclusões irrefutáveis.
VERDADE que o matemático se move num mundo de entes de razão que é quase um jogo. Provavelmente, é outra a angústia deles; e será talvez por isso que o moço matemático, que tem dois nomes de santo, João Bosco, e um nome muito conveniente para um cientista, Prolla, será por isso, dizia eu, que ele ouvia fascinado a borbulhaste e cintilante explanação, que Fernando Carneiro improvisava sobre os momentos da História, e outros problemas carregados da mesma essencial morrinha humana.
SEJA como for, tive saudade de minhas equações, dos teoremas e das demonstrações que alegraram a minha juventude. Ah! Se pudéssemos provar a um Yves Congar que a soma dos ângulos internos de um triângulo é dois retos, supostos os postulados da geometria euclidiana, ou se pudéssemos provar cabalmente que os Bultzman e os Teilhards ou Schillebeeckx estão errados no nível da tabuada!
O LEITOR maldoso certamente imagina que tenho um requintado prazer de andar todos os dias zangado com o que andam a dizer do Reino de Deus, ou do que chamam evolucionismo sem clara consciência de suas implicações. Não. Não tenho prazer nenhum. E estou pronto a ceder este posto de lixeiro a quem quiser me revezar. Teria algum gosto se, ao menos, as pessoas vencidas na esgrima do raciocínio se tornassem convencidas. Seria uma beleza se nesta luta ingrata pudessem os lutadores claramente descobrir quem ganhara e quem perdera, sim, pudessem saber que há o errado e o certo, e não apenas o antigo e o novo, e que, como os bons esgrimistas passassem a acusar a própria derrota: touché! apontando o coração. Tenho também saudades quando me lembro da esgrima que pratiquei meio século atrás com o professor de ginástica do Colégio Corção. E ontem, reencontrando um parceiro de xadrez, veio-me uma onda mais forte ainda de nostalgia e frustração. Ah! Se pudéssemos dar xeque-mate num progressista ou num padre inebriado pela descoberta dos "jovens"! Tempos atrás, quando o comunismo ainda não se apossara de nossas universidades, fui convidado, pelos estudantes (!) a fazer uma palestra na Faculdade de Direito. Lá percebi que nas primeiras filas estavam eles para se levantarem em sinal de protesto, logo que eu começasse a falar. Prevenido, apostrofei-os antes que se levantassem: — Vi ali no pátio algumas mesas com jogos de xadrez, desafio-os todos para uma simultânea, depois da conferência, e até, se quiserem, desafio-os também para uma queda de braços. Levantaram-se debaixo de uma vaia da maioria.
O XADREZ é realmente um jogo translúcido e incomparável. Você poderá alegar má digestão, dor de cabeça, mas não pode alegar os caprichos da sorte. Estão ali as peças arrumadas numa implacável simetria, as regras numa perfeita igualdade para brancas e pretas. Ganha quem melhor proveito tira das regras, das normas, quem jogar o certo; perde quem jogar o errado. Não importa se é jovem, se tem ideias largas, se é evolucionista: ganha quem jogar bem, perde quem joga mal. E as regras de movimento de cavalos e bispos não sofreram nenhuma alteração com o Concílio Vaticano II. Além disso o xadrez é o jogo mais conservador do mundo: tudo gira em torno de um rei cuja coroa é encimada por uma cruz. Queiram ou não queiram, os soviéticos ainda se apegam com obscura inconsciência a esta última cruzada.
LEMBRO-ME com saudades de Walter Cruz, que tinha a paixão do xadrez, e que, no período de nossa fulgurante amizade, costumava reduzir todas as categorias às enxadrísticas. Lendo algum mau artigo sobre hematologia ou sobre sociologia, rosnava cofiando o bigode: mau xadrez, mau xadrez... Para ele o mundo estava apinhado de bípedes implumes jogando uns péssimo xadrez.
MAS A grande, a avassaladora nostalgia, que até em sonhos me persegue não é a da demonstração cabal nem a do xeque-mate. É a nostalgia de outra ainda mais rara, mais maravilhosa, diria até milagrosa, que entretanto tive a felicidade de desfrutar algumas vezes, muitas vezes, entre os solavancos da vida.
REFIRO-ME à nostalgia violenta, apaixonada, devorante, tudo o que quiserem, de um pouco de concórdia, de amizade, de fraternidade, de entendimento, meu Deus! De um momento de doce paz como a da noite de ontem, enquanto Fernando Carneiro, vivo, supervivo, diante de mim e do João Bosco Prolla, dava uma demonstração das riquezas e belezas de uma alma racional. Como é bom, meu Deus, acamparem três irmãos num recanto do Reino de Deus.