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Quando o sal da Terra se degrada


Por Gustavo Corção,

publicado n’O Globo em 14 de setembro de 1972



A SINISTRA façanha dos terroristas árabes nas Olimpíadas de Munique terminou — diz-nos o jornal — num verdadeiro banho de sangue. Confesso que não gostei da metáfora do colega, mas compreendo, compreendo o désarroi ou a consciência boquiaberta do jornalista que já não tem o que dizer nem como manifestar seu estupor, se acaso o sente. No mesmo jornal cintilava ou lampejava —com fotografias e manchetes — a notícia do sequestro do presidente da Philips da Argentina. Mas não é por isso que não gostei da metáfora "banho de sangue". A razão é translúcida, porque a palavra "banho" dá ideia de purificação e de limpeza. Ora, o sentimento que me vem de tudo o que aconteceu, tudo o que se fez e se disse em torno dessa repetição de hediondos crimes comuns disfarçados em "crimes políticos" ou até enfeitados com a denominação de "violência revolucionária", se concentra e se reduz a uma fétida porcaria que parece constituir uma espécie de camada atmosférica que chamaríamos de escatosfera. Meu sentimento dominante é o de uma enorme náusea, que nada tem a ver com a náusea de Sartre, a não ser para incluí-los, ela e ele, como objetos da minha.


CREIO que o Papa externou sentimento parecido com o meu, mas expresso em termos mais moderados como convém às tiaras. Não tendo eu encargo ou cargo além da cruz que meu bom Deus carpinteiro à minha pobre vida afeiçoou, posso expandir-me aos gritos.


"Já me desenganei que de

queixar-me

Não me alcança remédio;

mas quem pena

Forçado lhe é gritar, se

a dor é grande.

Gritarei..."


* * *


GRITAREI para lembrar que todas essas coisas, contra as quais gritamos, formam um sistema. Torno a lembrar aqui a observação de um personagem de Shakespeare a respeito da propalada loucura de Hamlet. Sim, loucura também de nosso tempo, mas,


"There's method in his madness."


E O MÉTODO está nas esferas (que nome lhes darei?) que falam de violências e não violências e que, com esta bela e vulcânica palavra, pretendem encobrir aquela universalizante substância que entra pelos olhos, e sobretudo pelos narizes, mas ainda não pode ser impressa num ordeiro jornal. Sim, "there's method", isto é, há um sistema inspirador dessa inundação de "escatos", como creio que se diz em grego. E o método reside precisamente na deterioração geral do sal da Terra.


E AQUI neste ponto, se eu mencionar Dom Hélder, que tornou público o seu apreço por sequestros, assassínios de reféns, e por todo o "escatos" de que parece lambuzado o planeta, receio que algum leitor me julgue maníaco ou rancoroso. Nem uma coisa nem outra. Sou apenas um pobre homem normal, entrado em anos que já estou a dever à cova, como lá se diz nas terrinhas de Portugal. Sim, um pobre old man que não fez votos de estupidez, hipocrisias ou esquecimento, com os quais constituir-se-ão as novíssimas ordens religiosas, e por isto me lembro da entrevista concedida à revista Express (e certamente desmentida nos confessionários) em que Dom Hélder proclama sua admiração pelos sequestradores, só lamentando que o dinheiro obtido fosse pouco para a compra de armas. E, lembrando-me, julgo-me no dever profissional de relembrar.


* * *


LIA ONTEM, por acaso, num livro de apologética, uma longa citação tirada de Taine, Hypolyte Taine, historiador, ensaísta, filósofo e acadêmico que cem anos atrás pontificou sobre todas as coisas. Ouçamos o fantasma que nos dirá coisas sensatas com certo cheiro de guardado, e nesta irreverência o leitor verá que sou mais trapezoidal do que quadrado. Vamos ao Taine: "O cristianismo — dizia o historiador — é o órgão espiritual, o grande par de asas com as quais o homem se ergue acima de si mesmo, de sua vida arrastada e de seus apertados horizontes, e sendo conduzido através da paciência e da resignação até a serenidade, consegue ultrapassar a temperança, a pureza e a bondade, até chegar ao dom de si mesmo e ao sacrifício." E mais adiante o historiador acrescenta: "Sempre e em toda parte, há mais de dezoito séculos, desde que desfaleçam ou se atrofiem essas asas, os costumes públicos e privados se degradam (...) e a sociedade se transforma num prostíbulo ou num covil de assassinos."


ISTO que já foi dito em todos os tons por todos os homens de bem, e que Nosso Senhor Jesus Cristo resumiu nesta fórmula: "Sois o sal da Terra", é uma experiência palpável e mal cheirosa em nossos tempos. Não há portanto nenhum rancor, nenhuma monomania na evocação das causas profundas, quando os efeitos são tão gritantes; e as causas profundas de todos os desconcertos do mundo são religiosas, e se prendem à degradação do sal da Terra.


* * *


NÃO é descabido lembrar, na Semana da Pátria em que escrevo este artigo, o papel que o Brasil tem representado no pavoroso desconcerto que nos deixa estupefatos e que, entre outros fenômenos, produz a aberração ocorrida nas Olimpíadas, e a aberração mais grave ocorrida nos meios eclesiásticos. Eu me glorio de ser habitante do singular e único país do mundo que soube dizer não ao Sistema, ou ao "method of the world's madness". E já que o atual Governo teve contra si calúnias do mundo inteiro convém lembrar e convém gloriarmo-nos no fato consolador de ser este o mais popular Governo que já tivemos. E é com prazer que registramos a notícia recentemente publicada no O Estado de São Paulo: O MAF APOIA O PRESIDENTE: "O Movimento de Arregimentação Feminina, MAF, enviou telegrama ao Presidente da República manifestando irrestrito apoio a todos os atos com que honra o seu mandato."


DIZ o telegrama, subscrito pela presidente da entidade, D. Maria Mesquita da Mota e Silva: "O MAF, que congrega inúmeras mulheres de São Paulo, no momento que passa, vem apresentar V. Exª irrestrito apoio a todas as suas atitudes como todos os atos com que honra o seu mandato, que defende e engrandece o Brasil."


EU ACRESCENTARIA: "Porque, assim fazendo, opõe uma barreira à onda de [...] que ameaça o cristianismo e a civilização."

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