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Quinta-Feira Santa

Por Gustavo Corção publicado n’O Globo em 30 de março de 1972


"CHEGADO o dia dos ázimos, em que devia sacrificar a Páscoa, Jesus enviou Pedro e João dizendo: "Ide preparar a Páscoa, para que nós a comamos." E eles perguntaram: "Onde quer que façamos os preparativos?" E Jesus: "Ide, e quando entrardes na cidade encontrareis um homem carregando uma bilha d’água; segui-o até a casa em que ele entrar e dizei ao dono da casa que o Senhor vos enviou para que indiqueis a sala em que Ele possa comer a Páscoa com os seus discípulos. O dono da casa vos mostrará uma sala do alto, ampla e mobilada: fazei aí os preparativos. Partiram os dois e encontrando tudo o que Jesus anunciara, aí fizeram os preparativos da Páscoa." (Luc. XXII, 7-14).


HÁ NESTE singelo texto que nos descreve os fatos preliminares da primeira Quinta-feira Santa, ou da primeira Missa do mundo, uma ideia insistente, a do "preparo", que tem dupla significação, uma exterior e relativa aos cuidados da cerimônia e outra interior e relativa a uma prévia disposição.


A PALAVRA que Jesus repetirá à sua Igreja até o fim do mundo terá sempre esse duplo significado, o da liturgia, e o da Preparação interior que quer dizer "estar pronto para..."

POUCOS dias antes, já em Jerusalém, Jesus anunciara o fim dos tempos com este arremate: "Vigiai pois todos os dias, e orai para que essas desgraças não vos impeçam de comparecer diante do Filho do Homem." (Luc. XXI. 36). E poucas horas depois, no Jardim das Oliveiras, Jesus tornou a dizer: "Orai para não cairdes em tentação" e depois de ter pedido ao Pai que afastasse de si aquele cálice e de ter dito a palavra fundamental de todo o seu ensino. — "Faça-se no entanto, a tua vontade Pai, e não a minha" — voltou aonde deixara seus discípulos, e encontrando-os a dormir, tornou a dizer: "Erguei-vos e orai para não cairdes em tentação."


E ASSIM se vê que o quadro maravilhoso da mais bela cena de toda a história humana, onde Cristo instituía o modo festivo e incruento do sacrifício do Calvário, e o modo pelo qual cumpria a promessa de estar conosco até o fim do mundo, está cercado, precedido e acompanhado da mais grave de todas as advertências: preparativos, vigiai e oral.


A CEIA do Senhor foi o momento mais intensamente feliz que aos doze foi oferecido neste mundo; mas a radiosa alegria que todos nós quereríamos tem cada manhã, a de ouvir Jesus nos dizer: "desejei ardentemente comer contigo esta páscoa" mais do que todas as alegrias da Terra, estava contraposta a uma tensa e trágica expectativa. Havia no ar uma sombria traição que Jesus denunciou, provocando em Pedro a tricômica fanfarronice; havia o mistério terrível do ódio, e o Insondável mistério do imperfeito amor. Mas também já ali, naquele grupo de homens rústicos, iniciava-se por antecipação à Cruz a difusão de graças que jorravam da obra salvadora de Nosso Senhor.


* * *


HOJE sabemos por ciência e aprendida no regaço da Igreja, que são três os modos do mesmo e único sacrifício: o da Ceia, o da Cruz e o da Missa. E é nesse terceiro modo, em que tanto a vítima como o sacrificador se escondem sob os véus dos sacramentos, que temos em todo o mundo a presença repetida e espalhada, a presença cotidiana e socializada de nosso divino companheiro de caminhada.


A SANTA MISSA não é primordialmente e principalmente uma assembleia de fiéis presidida por um oficiante, como recentemente tentaram inculcar os falsários que, por malícia do Demônio, conseguiram chegar aos lugares santos. A Santa Missa procede do Calvário de onde lhe vem a energia espiritual e salvífica; e procede da Ceia de onde o modo incruento e tranquilo de realizar o mesmo sacrifício da Cruz. Daí a definição que tiramos de um verso que Wordsworth aplicou à poesia: "Mass is Passion recollected in tranquility."


PONDEREMOS bem, amigos leitor, o incomensurável benefício que Cristo nos deixou: podemos assistir diariamente à imolação do Cordeiro de Deus, sem sermos obrigados a assistir ao espetáculo que nossa pobre carne certamente não suportaria. Assim, transfigurado em doce, branco e discretíssimo encontro matinal nós temos o privilégio de assistir, de tocar as chagas de Cristo, de fazer o sinal da cruz, tão leve e tão indolor. Não foi na Quinta-feira Santa que Cristo consumou nossa Salvação; mas foi nesse dia, na Ceia cuidadosamente preparada que Ele, por antecipação, escondeu todo o pavoroso mistério de sua Dor no mistério de sua branca impassibilidade ainda exposta aos ultrajes dos homens.


MAS NÃO deduzamos daí, leitor amado, que Jesus não nos peça senão a assiduidade nas cerimônias indolores. Não, mil vezes não! Ele nos pede a nossa dor e nos diz que nossa pobre dor habitualmente tecida somente de miséria, de medo, de tristezas e às vezes até de revolta, sim, Ele nos diz que nossa dor pode e deve tornar-se fundida em Sua dor e assim poderemos, de algum modo, diuturnamente hiperbólico, completar no Corpo Místico o que faltou na Paixão.


E ASSIM, não foi só o modo incruento do sacrifício que se espalhou na terra e na história até o fim do mundo; também a cruz se multiplicou, e em cada ângulo da vida nos oferece uma ocasião de nos configurarmos por nosso modelo.

 
 

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