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Reflexões sobre a afetividade grupal




Por Gustavo Corção publicado n’O Globo em 10-05-1973


ESTOU aqui entre dois extremos. De um lado é antigo como o mundo o gosto que têm os amigos de estarem juntos, em torno da lareira ou do ar condicionado, a falar de qualquer coisa e de tudo, e a sentir que todas as coisas do mundo as estrelas, os infusórios, o acontecimento do mês ou do dia, servem de barraca para o efêmero mas gostoso acampamento da amizade. O Livro Sagrado não deixou de registrar esse dado da humana condição: “Ecce quam bonum et quam jucundum, habitare fratres in unum!”.


NO EXTREMO oposto está o fenômeno moderno e falsificado das comunidades de grupos onde é o grupo que produz a amizade quimicamente adoçada ou apimentada, e não a amizade que faz o grupo. Como sabemos, o mundo moderno, principalmente nas monstruosas cidades, apresenta alarmante densidade demográfica de solidões. Não sendo bom que o homem esteja só, ainda que o cerquem as árvores odoríferas de uma paraíso, e não mais sabendo como fazer amigo, o pobre homem moderno cai facilmente no visgo ou no mel dos grupos que lhe oferecem um calor de afetividade que até os animais apreciam. E quando esse grupo não parece exigir as obrigações, os compromissos, os princípios, as regras que cansam e confrangem, então a pobre alma sozinha põe-se em estado de férias e deleita-se com o xarope de afetividade servido pelo grupo. Mas a natureza das coisas tem muita força: na continuação do artifício o pobre isolado que caiu num grupo começa a colar-se, a sentir-se comprometido com vínculos de uma real amizade que logo implica solidariedade e obrigações. E se ele não tem fora do grupo compromissos fortes de doutrina e de vida, ele irá onde o levar o grupo. Faltando-lhe certa resistência de caráter, hoje rara, o pobre grupalizado irá até onde ninguém antes imaginara que ele fosse capaz de ir.


SE ESSE grupo, por sua vez, é tão disponível como seus solitários membros acontecerá o mesmo com ele. Poderá começar vagamente cristão, vagamente civilizado, sem sólida doutrina e vigorosos princípios, e lentamente transforma-se em qualquer coisa se dois ou três líderes de qualquer coisa se apoderarem das alavancas. Não há nada mais perigoso, hoje, do que essa vaga e superficial afetividade de grupos católicos de frouxa doutrina e moles princípios. As pessoas têm a sincera impressão de que aquele tépido convívio lhe faz bem. Recomendam-no. Defendem-no se alguém se queixa da frouxidão da doutrina e da moleza dos princípios. A Revolução Mundial, flagelo pior do que todas as guerras mundiais, tem lançado no mundo grupos assim, ou tem aproveitado o que outros, com as melhores intenções, fundaram. O Comando Central da Revolução, que tem mais coerência e eficácia do que a hierarquia da Igreja, já deu suas ordens: “todos às comunidades de base”.


E LOGO se observa o fenômeno de coagulação da pobre humanidade atordoada. É preciso vigiar. É preciso desconfiar muito das comunidades que logo produzem um gás de “fraternidade cristã” sem nenhum zelo pelos Mandamentos do Pai, sem nenhum amor intransigente pelas doutrinas do Filho, e sem nenhum discernimento do verdadeiro Amor do Espírito Santo. Em algumas dessas comunidades inebriadas da chamada “fraternidade cristã” que começa pela “morte do Pai”, e pela igualdade democrática que nada tem de cristã, observaram-se rapidíssimas transformações que as levam ao terrorismo ou às bacanais. Há casos em que a decência se mantém longo tempo. Esses são escolhidos para desmentir quem denuncia aqueles. E assim que congregam a tolice e a esperteza humana para a liquidação de todos os valores. Parece-me fulgurantemente óbvio que os Cursilhos de Cristandad se enquandram bem nesta espécie de fenômeno que acabo de descrever.


***


MAS TALVEZ seja melhor contar uma história. A do Fagundes, que começa na sexta-feira em que encontrou o Honorato. Ah! Que tempo! Quantos anos? Você quantos filhos tem? Netos ainda não... Não, o Honorato ainda não tinha netos. Fagundes com sentimento de superioridade ostentou o retrato de dois: um casalzinho. Mas Fagundes esconde o tédio de sua vida de juiz, homem estimado, casado com uma santa senhora. Honorato agrediu: _ O que fazes?


- Eu saio de casa todos os dias... você sabe que sou juiz..., respondeu timidamente Fagundes.


- NÃO é isto que pergunto. Pergunto o que fazes pelo mundo.


Fagundes baixou a cabeça e confessou que não fazia nada pelo mundo. Honorato passou-lhe o braço pelo ombro, valendo-se de sua maior estatura, e com voz cálida lembrou os tempos de colégio e acabou gabando-se do grupo que reunia em casa às quartas-feiras, aos “mercredis” para discutirem problemas da atualidade. Apareça, apareça. Você vai gostar do papo, e dos salgadinhos da patroa. Papo excelente. Temos o Ruy Gonçalves, o Tancredo da Petrobrás, o Sales Freire. Fagundes vergava sob a cruz de sua ignorância.


- Precisa desentocar, homem! O mundo precisa de gente lúcida como você. Precisa aparecer.


CHEGANDO em casa Fagundes contou o encontro e lançou com fingido desprendimento a ideia dos “mercredis”. Dois dias depois parava seu Opala no meio-fio do apartamento onde no 5ºandar cintilavam as ideias, e serviam-se salgadinhos ingeridos da trama dos problemas do mundo moderno. Foi recebido com ruidosa simpatia e confusa e profusamente apresentado. E logo a discussão que interrompera retomou seu calor. Falava-se do Vietnam, das dissidências sino-soviéticas, da queda do dólar, do Chile e da política do Vaticano. Honorato tinha ideias nítidas, claras, fortes, mas não encontrava acolhimento pacífico de um indivíduo com cara de gato que balançava a caça parecendo duvidar de tudo, exceto da ideia secreta, sua, que parecia querer guardar para o momento decisivo.


- Eu quero o estouro!


- Eu também, eu também – uivou Honorato – mas, não assim sem planos, sem preparações. Eu estou com o Fagundes, que ainda ontem me dizia: “Tudo tem sua hora”.

Todos olharam para o Fagundes, que cruzou a perna e acendeu o cigarro com confiança em si. Não se lembrava precisamente do contexto em que lançara aquela frase feliz. O caso é que agora os dois combatentes de vez em quando se voltavam para o Fagundes...

Voltando-se meia-noite e trinta para casa, depois de um silencia feliz, Fagundes abriu-se:


- Bom papão! Excelente papo!


***


ABREVIANDO, direi que Fagundes tornou-se assíduo aos “mercredis” de Honorato. No mês seguinte já se sentia iniciado num grupo para um mundo melhor. Em três meses engolia colherinhas de doutrina. E seis meses depois, para estupor da família, de Vara, e de todos os seus conhecidos, Fagundes estava preso por participação indireta num ato de terrorismo praticado para a edificação de um mundo melhor.


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