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Testemunho de Hilda da Silva

Testemunho

In Media Vita


As flores da quaresmeira deitaram-se no chão. Uma coberta arroxeada de trama aberta agasalhou as pedrinhas do caminho. Os pés andam a procurar um pouco de barro para fugir das pontadas duras. Lembrei-me de um outro caminho – que me disseram – era o caminho mais curto para se alcançar Jerusalém para a festa da Páscoa. Era um caminho árido, de pedras que machucavam os pés dos viajantes. À noite, buscavam os balsameiros e extraíam deles o bálsamo para curar as feridas que as sandálias não podiam evitar. Meus pés vão em busca de um pouco de solo barrento e não precisam de nenhum bálsamo – o caminho é pouco extenso. Uma pequena e apressada caminhada, uma curva à esquerda e abrem-se à frente as araucárias e o gramado verde e, como uma linha de horizonte, de perfil, a capela do Mosteiro da Santa Cruz estende-se simples, pequenina, janelas de vidros quadriculados e um campanário, onde o sino já me avisa que o ofício está quase a começar.

Alcanço a porta. Abro-a devagar. Tudo é silêncio. Os seres, que chegam e entram, deslizam como os monges. No altar, as velas acesas, grandes velas de cera acesas ladeando o sacrário, acendendo o colorido das flores envasadas em dois vasos bojudos de cobre, que brilham e brilham, a dizerem aos castiçais dourados que também eles foram polidos como um diamante para virem à Santa Missa.

Tudo é recolhimento e oração. O canto gregoriano é suave, em tom baixo e, quando nos deixamos conduzir por ele e, em alguns momentos, ensaiamos acompanhá-lo em um ou outro verso, descobrimos que a missa só pode ser celebrada em latim, pois como conseguiríamos em outra língua os acentos breve e longo da língua mater? Não compreendo todas as palavras – falta-me o hábito de ouvi-las, lê-las, cantá-las, mas como me fizeram bem à alma.

Nossa Senhora da Conceição, à esquerda do altar, sorri para mim.

Estou em casa!

Finalmente cheguei!

Foram cinqüenta anos “andando pelo deserto”. Só, absolutamente só. Não conversava com os caminhantes, porque ninguém pensava ou falava das mesmas coisas que eu.

Febrilmente, buscava Jesus, o Filho de Deus. Sabia que O encontraria em Belém, mas onde o caminho a conduzir-me até lá? Não havia estrelas a guiarem-me e o meu cérebro possui tortuosas vias e impenetráveis becos, e, vezes sem conta, neles me perdi. “Você não pode ser a palmatória do mundo” – dizia a mamãe dentro de mim. Ir e vir. Um passo adiante, dois para trás. Semelhança fugaz dos meus tempos de menina a brincar a cantiga.

Todavia houve um começo. Implorei ajuda a Deus. “Vá à missa diariamente”.

Primeiro passo:

Obediência. Lá ia à igreja da paróquia onde moro, em Niterói, 06:30 hs da manhã. Calor ou frio. Chuva. Tão cansada… Dia após outro. 10 anos. Abençoado 9 de abril de 2001.

Buscava ardentemente o Senhor. O que me faltava?

Segundo passo:

Viajei para Mendes – RJ, para assistir às bodas de ouro dos amigos Dr. Cláudio Braga e Lúcia. Lá, por breves instantes eu O entrevi numa conversa que durou ao menos meia hora. Tia Isca, como a chamo, é a Sra. Profa. Maria Thereza Ferreira da Costa, a Vó, como todos a conhecem aqui. Ela falava e sua voz trouxe-me, por um breve instante, um Jesus e uma Igreja outra. Eu olhava encantada o brilho do seu rosto: “Venha a Friburgo. Passe uns dias comigo”.

Levou tempo para que fosse “porque há um tempo para todas as coisas”.

Há cinco ou seis anos, vim pela primeira vez. Telefonou-me ela apressada: “Traga uma saia para irmos à missa no Mosteiro.” Desliguei e pensei: “Onde já se viu. É claro que vou levar uma saia. Jamais iria de calça assistir à missa num mosteiro”.

A missa. A surpresa. A missa dos meus tempos de menina.

A volta. As dúvidas. Outra vez o caminho penoso e sem ninguém para conversar.

Terceiro passo:

Finalmente, este ano em fins de março voltei a Friburgo, trazendo de lá um livro modesto, melhor, um opúsculo. Seu título é: Assis se Repete?, de Hirley Nelson de Souza. Esse pequenino livro de 55 páginas fez com que eu compreendesse que, amparada na palavra de Jesus e zelosa de seus ensinamentos, eu posso questionar a autoridade eclesiástica, se a razão e o conhecimento me dizem que ela está agindo de modo errado e descumprindo os ensinamentos de Jesus. Meu dever não é somente orar por essa pessoa, mas muito mais: devo empreender esforços para fazê-la recobrar a razão para bem cuidar de suas ovelhas, preservando a verdade dos ensinamentos de Cristo, tal qual ela vem sendo, cuidadosamente, guardada nestes vinte séculos.

Reencontrei a Igreja verdadeira, denominada de Igreja da Tradição, porque “apegada” aos ensinamentos de Jesus discordante da Igreja pós Concílio Vaticano II, a qual modificou e reduziu a Santa Missa, dispondo-a nas diversas línguas nacionais, em vez de preservar o latim, única língua em que se pode cantar o gregoriano e na qual a missa vem sendo rezada desde o princípio.

Ir à missa não é um ato social de convívio, que se faça apressadamente. Ir à missa é um ato de propósito interior, de querer encontrar Jesus na Eucaristia. É um ato que exige preparação diária, exercício da vontade para não entregar-me ao fascínio e apelos do mundo. É um ato que exige coerência entre o pensar, o falar e o agir retos. É um ato de constância. Dia após dia recomeçar o enfrentamento comigo mesmo, com minha miséria, a minha iniqüidade. Vencê-las um dia de cada vez, ancorada no único que me pode ajudar: Jesus, o Filho de Deus, que se imola sobre o altar e se reparte, a si mesmo se reparte em Pão Vivo para fortalecer-me. Ir à missa é um ato de fé. Por meio dela, eu creio naquilo que não posso compreender – o mistério eucarístico. E essa fé, renovada em cada comunhão que faço, cresce de tal modo, que me surpreende, às vezes, pela sensatez e coragem com que vivo os meus sofrimentos. Ir à missa é caminhar com Jesus, nutrir-me d’Ele na Eucaristia, para enfim, senti-lO fazendo morada no meu coração, porque “… já é tarde e declinou o dia”. (Lc XXIV, 29)

Ir à missa é um ato de adoração ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Conclusão:

Em 2010, li um livro: “Deus e os homens”, de P. Van Der Meer de Walcheren. Nele li uma carta do monge Pieterke a seu pai. Diz o jovem monge à página 152: “Você se recorda de como o nosso amigo dominicano concebe a nossa vida? Somos pastores dentro da noite: a cada um de nós Deus confiou um rebanho que deve levar a Belém! A realidade é esta, e quando estou no coro rezando sinto que é assim. Sei que sou a voz de uma multidão de desconhecidos que se calam. Este pensamento abrasa a minha alma e torna-a sedenta de amor. Quando penso em Deus, e eu creio e espero pensar n’Ele constantemente, penso ao mesmo tempo no meu rebanho. E é com o seu amor que eu penso.”

Sublinhei o centro desse texto porque eu creio, firmemente, que num mosteiro se vive para orar pelos homens e que muitas almas se salvam graças a essas orações eiradas de amor, do amor de Jesus pelos homens. Eis o Mosteiro da Santa Cruz. Sinto-me salva por ele. Dentro da noite oravam por mim sem me conhecerem e, conhecendo-me, oraram mais ainda. Pacientemente, oraram para que eu despertasse e compreendesse a verdade sobre a Igreja da Tradição e a luta constante desses últimos 50 anos com o mal e a Igreja ecumênica pós-conciliar. Estou em casa. A luz das orações dos monges iluminou o caminho para Belém. Cheguei.

Hilda da Silva

*Os artigos publicados de autoria de terceiros não refletem necessariamente a opinião do Mosteiro da Santa Cruz e sua publicação atêm-se apenas a seu caráter informativo.

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