Um dia o povo Inglês acordou protestante
- triregnum
- 13 de out. de 2020
- 4 min de leitura
Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 23-09-76
TRAGO AINDA HOJE, e ainda motivada pelo affaire Lefebvre uma interessante contribuição de Jean Dutourd publicada em France Soir, no qual a situação do Bispo francês é comparada à do bispo inglês John Fisher, único opositor de Henrique VIII que levou seu testemunho até o martírio. Eis o resumo daquela longa e dolorosa história: “Em 1535 John Fisher, bispo de Rochester, foi executado por ordem de Henrique VIII “defensor da fé”, porque, único entre os prelados ingleses, recusou a transformar a missa, que é a renovação do sacrifício da Cruz num simples “serviço de comunhão”. Em outras palavras, foi ele o único a se opor à protestantização da Igreja da Inglaterra. Protestantização que se estabeleceu sorrateiramente depois da morte do último obstáculo.”
“O POVO vendo que as caras eram as mesmas julgou que a religião não mudara.” INTERROMPO JEAN DUTOURD para resumir seu texto num susto aplicável a toda a atualidade católica: amanhã ou depois o povo católico do mundo inteiro, na sua brutal e mole maioria acordará protestante, ou nem sequer acordará.
A NOVA RELIGIÃO das Conferências Episcopais ou do Homem que se faz Deus, segundo a lógica interna da mudança perpétua, que os tolos tomam como manifestação de vitalidade quando, na verdade, são sinais de desmoronamento e de morte, essa nova religião em perpétuo devenir depressa atingirá as mais desordenadas formas de protestantismo, não conseguindo sequer manter as formas mais altas e tradicionais da Reforma. No ponto em que se acha o fenômeno, essa Igreja ainda reclama para si o Papa eleito na Religião Católica — um Papa diminuído pela colegialidade que já renunciou ao báculo e já se desfez da tiara.
NÃO ESTAMOS EXAGERANDO, nem gracejando, mas observando três fatos de brutal objetividade: a troca do báculo, sinal de autoridade e de governo, por um bastão de peregrino, o desaparecimento da tiara em torno da qual se tecem as mais variadas suposições; e a hipertrofia das conferências episcopais, tudo isto converge para um sombrio prognóstico.
TEILHARD DE CHARDIN lançou uma fórmula que não tem sentido nenhum na sua fenomenologia: “Tudo o que sobe converge”. Ao contrário, onde a lei da matéria se sobrepõe à do espírito, é mais acertado dizer que “tudo o que cai converge”.
NO CASO VEMOS em todas as tendências da outra igreja uma convergência para baixo: uma naturalização do que era sobrenatural, de uma democratização do que era hierárquico, de uma protestantização do que era católico. E isto tudo se passa sem parecer acordar as consciências do povo adormecido. Amanhã ou depois, as Conferências Episcopais julgarão desnecessária a eleição de um novo Papa. Para que? Caberá aos católicos que permanecem católicos o encargo de restabelecer a continuidade interrompida. O affaire Lefebvre, terá servido para alertar as consciências dos bispos ainda católicos, ou se perderá na tempestade apocalíptica que já se anuncia. O autor do artigo publicado em France Soir continua nestes termos: “Quatrocentos anos mais tarde Fisher foi canonizado. Será que dentro de quatrocentos anos ou até antes D. Lefebvre não estará também canonizado?”
“SEU CRIME é exatamente o mesmo que o de Fisher. Ainda não lhe cortaram a cabeça, mas não é impossível que este ancião morra de tristeza depois da decisão tomada pelo Papa.
“TUDO É OBSCURO no “affaire” D. Lefebvre que parece mais uma escamoteação. Proibe-se D. Lefebvre de celebrar a missa, de administrar os sacramentos e de pregar.”
“MAS POR QUE? Ninguém o esclarece. Será porque ele diz o Pai nosso e o Credo em latim, porque mantém a liturgia tradicional, prepara seminaristas como eram formados há apenas vinte anos atrás?”
“NENHUM ATO de acusação foi publicado. Parece que lhe reclamam o não ter aceito as orientações do último Concílio, o qual aliás tinha explicitamente afirmado que não era “doutrinal”, mas “pastoral”. O crime de D. Lefebvre seria então o de se apegar à tradição de Santo Tomás de Aquino, e do Concilio de Trento sobre a qual a Igreja viveu mais de setecentos anos.”
“O MÍNIMO QUE SE PODE DIZER desse papa é que é um personagem ondulante e diverso. Um dia declara as coisas mais santamente tradicionalista às quais todos os Lefebvre da cristandade poderiam subscrever; no outro dia afirma que ele mais do que ninguém tem o “culto do homem”. No século XIV, havia um papa e um anti-papa que se excomungavam mutuamente. Hoje tem-se por vezes a impressão que o papa e o anti-papa estão unidos na mesma pessoa, pelo modo com que a dita pessoa sopra o frio e o calor.”
“SOMOS SEMPRE mais impiedosos com os irmãos ou parentes próximos. O papa que várias vezes recusou receber D. Lefebvre, que o condenou sem ouvi-lo, recebe acintosamente o Sr. Gromyko que é ateu, representa o Gulag e que pertence a um governo que há sessenta anos persegue os cristãos.”
NÃO ACOMPANHO o paralelo traçado por Jean Dutourd, entre o caso Fisher e o caso Lefebvre, porque para imaginar a possibilidade de uma canonização é preciso, previamente confiar na continuidade da Igreja Católica Militante. Não me parece provável a canonização de Dom Lefebvre; mas parece-me certa a idéia de que, desde já, sua mansa e inabalável permanência seja no Céu festejada pela alegria dos santos e dos anjos. Hoje, sem atrevimento, talvez possamos dizer que haverá igual ou maior alegria no céu pelos justos que perseveram até o martírio embora sem efusão de sangue por falta de coragem dos seus perseguidores.