Por Gustavo Corção,
publicado n’O Globo em 24-03-1973
VAMOS agora ao livro de Ovídio Perez Morales, que merece certa atenção no Brasil, e especialmente nesta cidade, por tratar-se de obra doutrinal editada em Caracas pela Oficina Latino-Americana de Cursillos de Cristandad. Digo que a obra é "doutrinal" porque o autor escreve com impecável seriedade, cita textos pontifícios, dá grande destaque à Conferência Geral de Episcopado Latino-Americano em Medelin, fala frequentemente de Jesus Cristo, no Apóstolo Paulo e outros personagens.
A PRIMEIRA parte do livro, composta de três capítulos, pretende apresentar um humanismo, uma cristologia e uma eclesiologia. A língua que o autor fala, com sotaque ora teilhardista ora marxista, é a de uma fenomenologia com que às vezes parece sinceramente querer exprimir a clássica transcendência do Cristianismo, sem todavia consegui-lo. Preso à ideia fixa de "liberación" que o mimetismo cultural das esquerdas lhe impõe, o autor nos apresenta um Cristo libertador, apenas um pouco menos caricato do que o do "teólogo" Boff, que é a Superstar de nossa teologia progressista, aplaudida e afagada por nossas autoridades eclesiásticas.
A IDEIA central de liberação é mais um processo histórico e temporal do que uma salvação sobrenatural. Chega a inspirar dó o esforço que o autor parece fazer para exprimir sua secularização do Cristianismo sem, todavia, ousar a deslavada ou desaforada simplicidade de um Boff ou de um Comblin. E por isso mesmo o livro de Morales é mais nocivo porque está cheio das "migalhas de evangelho", de "fragmentos de ortodoxia", de "pedaços de demolição", e, portanto, como serenamente dirá D. Estêvão Bittencourt, cheio de "aspectos positivos". Um ponto importante, que o autor salienta na página 48, dizendo-se apoiado no Vaticano II, é a necessidade de bem frisar a não existência do clássico dualismo cristão, que estabelece uma distinção real de duas ordens, a natural (ou da primeira criação) e a ordem da graça (ou da segunda criação).
AS POUQUÍSSIMAS vezes que fala em salvação é para dizer que ela é não somente universalmente oferecida por Deus, mas universalmente realizada pela "liberação unificante que já opera na história". Logo adiante lemos: "Hay un polo supremo de convergencia del preceso liberador unificante divino y un solo centro de referencia de toda a acción amorizante de Dios: Cristo, alfa y omega, eje de la humanidad y meta de la historia."
A SUBFILOSOFIA dita "fenomenológica" só pode produzir essa espécie de subteologia de um "naturalismo" só disfarçado pelo pedantismo das construções verbais.
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NA SEGUNDA parte, que trata do marxismo, o autor pretende fazer uma exposição serena para crítica ulterior, mas não consegue fugir à tentação de uma apologia. Eis uma amostra: "1. Posición del problema: Frente al marxismo el cristiano está llamado, hoy por hoy, a una actitud de sinceridad y lucidez. Sinceridad para aceptar la dosis de verdade que el marxismo encierra...". Desenvolve a dose sem mencionar sequer os miligramas daquilo que a Igreja já condenou como desumano, ímpio, atroz e monstruoso. Mais adiante continua: "Una posición critica frente al marxismo ha de implicar necesariamente una apreciación de los valores que presenta, das inquietudes que plantea, y de las esperanzas que suscita en tantos miembros de la comunidad humana. No se pode simplisticamente atribuir los triunfos (sic) del marxismo en nuestro mundo al puro uso de las armas (enviados em 1942 pelos norte-americanos) y a la dominación totalitaria y imperialista exercida desde centros visibles del poder político; luchas concretas contra injusticias, la cuota de sacrificio que los movimientos marxistas han sabido ofrecer en la defensa de los intereses de los trabajadores, la consciencia de solidariedad popular que ha despertado el marxismo y, sobretodo, ei optimismo mesiánico que ha sabido suscitar en milliones de oprimidos y, en general de contemporaneos nuestros expuestos a la desesneranza, son factores que deben tener-se en cuentá a la hora de jusgar adequadamente el fenomeno de la difusión de concepción del hombre y de la sociedad" (págs. 63 e 64).
NESTE mesmo capítulo o autor passa gradativamente do marxismo para a liberación e o amor trazidos pelo cristianismo — amor que deve ser traduzido em serviço, e serviço que desabrocha na Revolução: "Por eso el cristiano no puede ir con las manos vacias, la consciencia puramente pasiva, a una revolución; su fe le establece presupuestos para la acción, lineamentos para la conducta; puede y ha de recibir ciertamente iluminación de la praxis misma, pero ha de imprimir en esta el sello de su "actitud cristiana" (pág. 85).
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NÃO se diga, porém, que o doutrinador cursilhista da Venezuela não faz críticas e restrições ao marxismo. Na terceira parte ele nos mostrará, com abundante apoio na Gaudium et Spes, a superioridade da visão histórica cristã (pág. 102) por onde se vê, inequivocamente, que o marxismo é incompleto e insuficiente. Ou melhor, onde se vê que o cristianismo é o verdadeiro e completo marxismo. Na linha dessa dialética poderíamos dizer que Jesus Cristo é que foi o verdadeiro Karl Marx.
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AOS LEITORES, que ficaram estomagados pelo que já escrevi sobre os Cursilhos, ofereço estas reflexões serenas sobre o livro de um líder cursilhista venezuelano. E più non dito...
O QUERIDO leitor não precisa escrever-me para dizer que em seu Cursilho não há Pregação subliminar de marxismo, lavagem de crânio e subversão das faculdades humanas. Acredito.
ASSIM como há arcebispos e bispos que se esforçam para provar que já não são católicos, também haverá cursilhos que não são cursilhistas. Quando esquecemos que é a "Verdade que liberta" e desatamos a falar em amor, amor, amor, em todos os tons, estamos prontos para engolir tudo; e para sermos engolidos pelo "Leão que ronda em torno de nós, procurando a quem devorar".
SERÁ talvez por isso que Perez Morales, o doutrinador cursilhista, não falou no Demônio. É verdade que também não teve uma palavra para a Virgem Santíssima.