Por Gustavo Corção, publicado n’O Globo em 23-09-76
CHAMARAM-ME A ATENÇÃO para o artigo de Tristão de Athayde no JB, de 5ª feira última dia 16, no qual o colunista habitualmente moderado, tolerante, otimista e aberto parece especialmente encolerizado contra Dom Lefebvre. Reduzindo sua apreciação sobre o drama de consciência que impressiona o mundo inteiro. Tristão de Athayde desfecha sobre Dom Marcel Lefebvre quatro injúrias gravíssimas: rebelde, cismático, herético e fascista. Adiante acrescenta ainda o termo “integrista” à coleção de vitupérios atirados contra Dom Lefebvre. Disse eu que T. A. injuria o Bispo Francês que resiste ao Papa Paulo VI, e insiste em continuar sua missão anterior ao pontificado de Pio XII. Como, porém, T. A. não explica qual é a desobediência, qual é a heresia, e qual o ato que o separa da Igreja Católica, é mais exato dizer que T. A. atira contra a impressionante figura do Bispo francês, não injúrias moralmente configuradas, mas impropérios coléricos. Por que estará tão zangado Dr. Alceu, que poucos dias atrás declarara que a maior alegria de sua vida fora o alargamento ecumênico recentemente inventado?
NÃO TENTAREI, E CREIO que nenhum de meus leitores me cobrará a explicação dos estados de espírito do colunista do J. B.; mas empenhado a fundo no drama que tortura as consciências católicas, e seguindo um método especial de análise histórica, não posso desdenhar a singularidade revelada que sinto debaixo do artigo de T. A. É em outra página sua, mais antiga, que encontro uma primeira explicação para o caso Lefebvre que realmente é hoje um vértice representativo de milhões de sofrimentos católicos. Não sei se o leitor já ouviu falar no livro Violência, Não de Alceu Amoroso Lima, Ed. Vozes. Nesse livro o autor escreve uma página sobre São Pio X que vale a pena reler, e que nos traz um subsídio valioso para melhor compreensão da atual crise que se concentra no caso Lefebvre.
EIS A PÁGINA 204: “Fui reler ontem a encíclica Pacendi. (Encíclica de Pio X, 1907, contra os erros e abusos modernistas). Não pude continuar. Parece um documento escrito por um Torquemada! Comparar o que está ali escrito por um santo, e no entanto ressumando ódio, vingança, punições, terror, condenações, expulsões, o que há de mais tipicamente inquisitorial, é confrontar, com o que hoje escreve Paulo VI ou escrevia ontem João XXIII, é como mudar… de planeta!” (e por que não de… religião? perguntamos). “É um documento tipicamente da Igreja policial, sem a mais remota semelhança com o Evangelho, ou mesmo com o Antigo Testamento. É um código de torturas. É a disciplina da chibata, como se aplicava na nossa Marinha, antes de 1910. De cristianismo, nada, nada, nada.”
“FIQUEI HORRORIZADO e tive de deixar de ler, para não extravasar no que estava escrevendo, então sim ser acusado de me insurgir contra um Papa, contra um Santo, contra a palavra da Igreja oficial e que continua de pé.”
“NUNCA TINHA LIDO esta encíclica senão muito de passagem. Só então compreendi que entre 1907 e 1965 há um abismo na história da Igreja.”
AQUI PROPONHO um retoque no abismo que “só então” T. A. viu cavado na história da Igreja. Refiro-me às datas, porque realmente até maio de 1954, data em que Pio XII solenissimamente canonizou o grande Papa Pio X, não havia tal abismo. Para ser mais exato apertemos o intervalo: até 1958 permanece o mesmo o “planeta” de João XXIII e sobretudo louco lembraria a idéia de dizer do novo grande Santo, o que T. A. agora nos proporcionou.
O FATO IMPORTANTÍSSIMO, para cuja evidência, nos servimos das reações e dos precipitados de T. A., é o abismo que se cavou entre a Igreja de São Pio X, Bento XV, Pio XI, Pio XII, de um lado… e o “planeta” de João XXIII e sobretudo Paulo VI de outro.
O QUE REALMENTE revela esse abismo, anterior ao caso Lefebvre, é o fenômeno consubstanciado no artigo de T. A. como mais tarde o escândalo do Primaz da Bahia na loja maçônica e como tantos outros.
A. PUBLICA NESTA PÁGINA a consciência deste abismo no que estamos de acordo. A única coisa infinita que nos separa é a preferência dos bordos de abismo. O colunista T. A., líder católico nos tempos de Dom Leme, hoje recusa com evidente horror o lado da Igreja que, de Pio XII emenda em São Pio X, São Pio V, e em toda a tradição católica caracterizada pelo zelo amoroso com que defendia o Depósito, e pela força da Fé com que daria a vida para guardar a integridade virginal da Santa Igreja. Nós outros, ao contrário, recusamos o outro lado do abismo onde estão os numerosos levitas que se entregaram a todas as cessões em nome de novos princípios teológicos que imputamos falsos e ímpios, como todos os santos papas e santos doutores da Igreja nos ensinaram, como os santos mártires pelo exemplo do Sangue nos mostraram. E a quem nos quiser impor como obrigatória a escolha do outro bordo do abismo, diremos nom nossumus. E a quem insistir na idéia de que, em tais circunstâncias devemos estrita obediência a Paulo ou Pedro, lembraremos o que Jesus disse a Simão Pedro, na estrada da Cesaréa, quando esse primeiro Papa quis ter idéias de sua própria criatividade.
O CASO DE MONSENHOR LEFEBVRE difere do caso geral de milhões de consciências católicas pelo maior vulto da obra e do personagem nele envolvido. Em essência, o que ele quer, e não pode deixar de querer, é permanecer na Religião que desde Pio XII a Nosso Senhor Jesus Cristo não apresenta abismos de descontinuidades nas mais diferentes mudanças culturais.