Por Gustavo Corção,
publicado n’O Globo em 31 de agosto de 1972
NAS ÚLTIMAS páginas do 1º volume de meu livro Dois Amores e Duas Cidades, referindo-me à transmutação civilizacional que se operou no século XVI, escrevi estas linhas: "Volvendo ao problema da mudança de civilização, tornamos a dizer que a Idade Média morreu de morte trágica, e que a nova civilização nasceu em termos de modernidade, isto é, de rejeição do mundo anterior. Com muita dificuldade se imaginará o emaranhado de causas, nos Impérios, no Papado, nas estruturas sociais e econômicas, que produziram essa condensação de ressentimentos com dimensões civilizacionais. Sem querer anular as responsabilidades pessoais, é terrível pensar nessa dinâmica da solidariedade nos méritos e deméritos, pensar nas somas que influem em cada um, e nos atos de cada um que influem nas somas."
"QUANDO, por exemplo, Lutero pregou com sonoras e coléricas marteladas, na porta de sua igreja, as proposições de rebeldia, uma imensa multidão de responsáveis teria de ser imaginada em torno dele, para a mais completa explicação de seu ato, e da morte trágica do mundo medieval. O fato é que uma belíssima experiência — a da conquista da terra e da afirmação de seu senhorio sobre o mundo — começa para o homem em termos de ruptura e ressentimento. E assim prosseguirá."
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"E AGORA, com a ajuda da imaginação do leitor, seremos os cenógrafos de tão prodigiosa transmutação. O pano desceu sobre o mundo medievo, mundo mediterrâneo, côncavo, fechado sobre si mesmo, ou aberto na direção das agulhas de pedra das catedrais. Descortina-se agora um mundo atlântico, uma Europa convexa, estrelada, lançada nos mares pelas pontas imantadas de seus promontórios. Sagres lança linhas de força que abrangem o orbe. O prestígio da misteriosa e abrigada Veneza transfere-se para Antuérpia debruçada sobre um mundo nascente. E é nessa paisagem de apoteose que vemos o novo homem pisar com mais força a terra mais possuída, a natureza mais dominada. Diz no seu coração que doravante pode contar consigo mesmo, e até nos momentos de maior exaltação chega a dizer em seu coração exaltado que só consigo mesmo pode contar."
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ASSIM descrevia eu anos atrás a transformação composta de miséria e de glória que se opera no mundo ocidental. O resto está em Dois Amores e Duas Cidades, AGIR, vol. II. Mas o que hoje me traz à rememoração deste texto é a lembrança do 4º centenário dos Lusíadas, e a decorrente ideia da necessidade de uma retificação.
NA PASSAGEM que acabamos de ler (creio que induzido por Sombart ou Burckhardt), tomei duas cidades como símbolos das duas civilizações, a mediterrânea, e a atlântica, Veneza e Antuérpia. Ora, a lembrança das comemorações do centenário dos Lusíadas, e o casual reencontro da mensagem de Fernando Pessoa me fizeram cair em mim, e não há queda mais alta e contundente. Caído em mim reconheci a injustiça colossal dos símbolos escolhidos, e aqui trago a mão à palmatória. Mas antes da retificação acho necessário estabelecer uma distinção importante no que concerne ao critério do valor das nações. Diria inicialmente que quase todas as nações do mundo — aquelas que não resultaram do aleatório movimento browniano dos povos — têm sua razão de ser, e podem ser aquilatadas segundo dois critérios: o primeiro que chamo de valor histórico e que se mede pela riqueza de consequências na linha horizontal dos eventos que tecem a história; o segundo critério é o do valor cidético que se mede pela riqueza e significações de ideias que certa nação realizou numa imobilidade de arquétipo, ou de figura zodiacal projetada no firmamento sob cuja impassibilidade transcorre o tumultuoso torvelinho da aventura horizontal da humanidade. Tomemos a Grécia. A Grécia de Péricles, de Euclides, de Platão e Aristóteles teve, como todas as nações, uma genealogia histórica: fundou o império mediterrâneo, fecundou com seus cromossomos o mundo romano, e ao cabo de alguns muitos séculos tornou-se um mero país balcânico. Mas houve um momento em que três ou quatro séculos se imobilizaram num eidos, num arquétipo, numa constelação de ideias que ficaram e ficarão perenemente oferecidos à admiração dos homens, como uma Cantata de Bach, ou um Quinteto de Mozart.
A CIVILIZAÇÃO mediterrânea nas subsequentes glórias, no esplendor do Império de Trajano, terá sempre essa transcendental e super história matriz que foi a Helade.
E ONDE buscaremos nós o padrão, o arquétipo da civilização atlântica? A resposta primeira está na Lusíada epopeia, sem igual em toda a literatura do mundo, e perto da qual a Henríade de Voltaire soa como obra de um colegial escrita em boa prosa francesa. A segunda resposta está na Mensagem de Fernando Pessoa, que tem esta epígrafe: "Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum", e este texto inicial:
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabellos
Olhos gregos lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é um ângulo disposto,
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra, onde afastado,
A mão sustenta, em que se appoia o rosto.
Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.
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SE HOJE reescrevesse o passe da transmutação da Cristandade morta para a nova Cristandade que o povo ibérico propôs ao mundo, e o mundo recusou, eu escolheria duas nações extremas e eternas no passado que passou, para marcar a civilização mediterrânea e a civilização atlântica e universal: Helade para a primeira, e para a outra Portugal.
AMBAS pequenas, como convém às joias.