Por Gustavo Corção,
publicado n’O Globo em 10 – 02 – 1973
PARA descansar da atoarda do século, e da mais estridente algazarra dos "católicos" secularizantes, voltei ontem a dar o melhor de meu tempo à leitura daqueles que penetraram mais profundamente no segredo e no mistério da Cruz, e que nos são propostos pela Igreja como modelos e mestres. Achei-me a reler São João da Cruz, mas, para não andar sozinho em tão ásperas veredas, procurei o Pe. Penido, Itinerário de São João da Cruz, e depois, com uma pungente saudade das mil coisas perdidas, voltei a ler as páginas admiráveis escritas pelo grande Maritain de Les Dégrés du Savoir. A título de amostra ofereço estas meditações sobre a doutrina do vazio (pág. 658) do doutor supremo do saber noturno e incomunicável. Maritain, que passou sua vida de filósofo aos pés de Santo Tomás, o doutor supremo do saber diurno comunicável, nessas páginas preciosas, com que prefaciou o grande livro do Pe. Bruno, revela-se um profundo conhecedor de São João da Cruz: "Sendo desproporcionados à possessão de Deus em sua vida própria todos os meios humanos, quaisquer que sejam, o melhor que pode fazer a criatura é deixar-se de si mesma, é extenuar-se, renunciar a suas próprias operações, esvaziar-se. Esta tese central de São João da Cruz seria absurda se Deus não estivesse presente a querer ocupar totalmente nossa alma." (...) "Eis-nos aí no ponto crucial de aparente antinomia entre a linguagem ontológica da teologia e a linguagens prática e mística de um São João da Cruz ou da Imitação."
SIM, não é do ponto de vista de nosso ser e de suas faculdades que o místico se coloca, é do ponto de vista da apropriação de nós mesmos e do livre uso e do exercício moral que fazemos de nossa atividade. E aí ele exige tudo. É preciso nos darmos totalmente. São João da Cruz nos prega a expropriação do eu. "Essa espécie de morte não oblitera a sensibilidade, ao contrário, afina-a, não endurece as fibras do ser, ao contrário, as espiritualiza — essa espécie de morte nos transforma em amor."
"LEMBREMO-NOS — continua Maritain — que a graça não se superpõe à natureza, como um teto sobre um edifício; a graça enxerta uma vida divina que penetra e eleva a alma na sua própria essência como nas suas faculdades, capacitando-a para obras divinas que procedem todas da graça, e todas de nossas potências sobrenaturalizadas pela graça. Que quer isto dizer senão que, no termo de nosso crescimento, o princípio essencial de todos os nossos atos, a agente principal, a cabeça de nosso governo interior, não pode ser nosso próprio eu, mas só pode ser o Espírito de Cristo em nós!" E isto não é possível sem uma radical desapropriação. Enquanto formos proprietários de nós mesmos, não chegaremos àquele vazio que é a exigência suprema do amor de Deus que nos quer n'Ele transformados.
"E É POR ISSO — diz adiante Maritain — que a realização prática do axioma: ‘a graça é completa e não destrói a natureza’, só se efetua na agonia e na morte mística da natureza. Não na morte ontológica. Morramos a morte dos anjos, dizia São Bernardo. Na natureza humana, ferida pelo primeiro pecado e profundamente mordida pela concupiscência, essa morte não pode realizar-se sem as grandes renúncias e escalpelamentos da noite dos sentidos e da noite do espírito." (...)
"PARA que o próprio Deus opere, diz São João da Cruz (livro III, cap. II), a união divina com a alma, a única maneira que convém é aquela que despeja, que exaure, que leva as potências da alma a recusarem sua jurisdição natural, e suas operações, para que ela possa receber a infusão e a iluminação do sobrenatural".
MAS a lei do sofrimento depurador vai ainda mais longe, porque a alma já elevada até a união transformante, e que doravante, no dizer dos santos, não pode sofrer senão em razão de Deus e não das criaturas, fica mais do que nunca sedenta de sofrer, diz São João da Cruz. E Maritain: "Assim é porque, na realidade, a própria graça que nos transforma é a graça de nosso chefe crucificado, e é para nos associarmos à sua obra, morrer para e pelo mundo, que nós nos transformamos de claridade em claridade".
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ESTAVA eu neste ponto da leitura, quando o telefone chamou. Era uma carmelita que dizia estar rezando por mim, e que me aconselhava a descansar nas dores de São João da Cruz, para não esmorecer.
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OUTROS telefonemas chamaram-me à ruidosa realidade de um cristianismo (?) secularizado, e como quem acorda diante de uma espantosa realidade, que o sonho maternalmente escondera, senti uma vertigem de dor e de estupor. Como é possível, depois de tantas e tão maravilhosas riquezas, ter chegado o cristianismo ao papel grotesco de um reboque das mais vãs e cruéis doutrinas jamais inventadas pelo enfermiço verme que parece ter nascido na decomposição do planeta gloriosamente habitado? Como pode? Como pode?
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O QUE me inquieta tanto, leitor, não é a sorte que terá a obra escrita de São João da Cruz, nem é a sorte da Igreja que em sua essencial e nuclear santidade já venceu, já triunfou. O que me preocupa é a sorte dos loucos que trocaram todas as grandezas de Deus por uma liberdade de libertinos. Mas também estremeço dos pés à cabeça quando penso nas crianças que estão nascendo, que estão crescendo, e para as quais já se abrem as mandíbulas da Máquina do Mundo. E me perco em vãs e dolorosas sondagens sobre o misterioso consentimento de Deus. Fiquemos hoje aqui, e para despedida ofereço esta opção: se não queres perder-te em Deus, se não queres o Nada para ganhar o Tudo de Deus, a alternativa que brevemente se oferecerá é a de seres nada nas tripas das minhocas.